RAPA CÔDEAS
.
.
.
.
Dr. JOÃO GASPAR DA COSTA
.
.
.
.
Fig. 1 - Dr. Gaspar da Costa. Meados de anos 50
Tez morena. Rosto fechado. Picadote de bexigas ?. Cabelo grisalho e finamente ondeado. Nunca se lhe viu um sorriso. Voz baixa e grave. Ar severo. Se calhar não o era e a intenção seria só obrigar a malta a puxar pela carroça, com força, ao mesmo tempo que com uma cara assim a disciplina aparecia obviamente imposta. Rigoroso.
No júri das provas orais do 5º ano sentava-se sempre na ponta da secretária virada para o espaçoso estrado até à porta de entrada da sala. E porquê?!
A prova oral de português tinha a solenidade que lhe conferia a imposição de cada aluno se fazer acompanhar dos "seus" Lusíadas. Para o Dr. Gaspar exame oral de Português, do 5º ano, era Lusíadas de ponta a ponta.
Controleiramente sentado na referida ponta da secretária, isso lhe permitia facilmente topar "chichanços", por suaves lapis de fina ponta, desentrançadores das macabras "orações". Deste modo, fazia sentar o aluno encostado ao topo da mesa e mandava-o pôr o livro "dos Lusíadas" em cima da mesa, logo por baixo dos seus olhos policiais..
O Dr. Gaspar metendo o polegar entre páginas abria o volume à sorte.
A mim, calhou-me a entrada no Canto IV.
- Lê em silêncio esta primeira página do Canto IV, disse-me o Dr. Gaspar. Li. Agora relê com calma, pediu-me outra vez.
- Já leste? Então divide as orações ...
Espetei o dedo na página e com ele percorri em silêncio, linha a linha, a primeira página do Canto IV. Aqui e ali voltava atrás, ou saltava de linha. Assim, fui mentalmente tricotando o "trajecto oracional". Pronta a investigação, levantei a voz e papagueei a sequência das várias orações, bem medidamente, sem hesitações nem solavancos ou arrependimentos. Terminada a página, recebi a seca indicação de um "chega". Saí-me com elegância. A elegância com que sai o toureiro quando imobiliza o touro volteando a capa e virando costas ao bicho, baleticamente, e com recortado desplante!
Animados, examinador e examinando, aquele iniciou solicitações de interpretações. Patati patatá, patatá patati e "prontus". Desenvencilhei-me com interior e inesquecível satisfação - 14 valores -. Não, que o Rapa Côdeas era um Adamastor temível.
Rapa Côdeas?!
Sim. Rapa Côdeas. Muita gente já quase se não lembrava do seu nome baptismal e de família. O Rapa Côdeas veio mesmo, depois de deixarmos o Liceu, a simplificar-se pelas gerações seguintes num, simplesmente, Rapa. Julgo bem que os destas novas gerações já nem sabiam a etiologia da alcunha "Rapa".
Dispenso-me de elucidar a origem desta alcunha ... et pour cause.
O Rapa era um professor sólido, sombrio, exigente. Um excelente docente.
Tentei investigar eventual informação sobre a sua vida e achegas ao seu currículum. Nada mais consegui do que descobrir que terá sido coetano, entre mais, de Fernando Namora. Isso se demonstra com as Fig.2 e Fig. 3.
Fig. 2 - Reunião de coetanos na frequência da Universidade de Coimbra. O Dr. Gaspar da Costa, com pésinhos tímidos, figura entre quatro contemporâneos à sua direita e três do lado esquerda. Ombro com o ombro esquerdo do Dr. Gaspar da Costa está o médico e escritor Fernando Namora. Que caloroso bafo da amizade une os membros deste grupo multidisciplinar, para assim se reunirem cerca de 10 anos antes das minhas policiadas deambulações pelas orações do Canto IV. Terão estes bravos sido repúblicos na mesma República?
Fig. 3 - Da esquerda para a direita: João José Cochofel, poeta e pintor, Fernando Namora, médico e escritor e João Gaspar da Costa docente liceal e, certamente, cultor também de hobbies intelectuais.
A Fig.3 mostra circunstância de regozijo durante a celebração da licenciatura de Namora em Medicina. Esta estimulante e fertilizadora multidisciplinaridade era um dos encantos da ambiência tão característica, á época, da vida académica em Coimbra.
E "prontus". Não sei dizer mais nada sobre o Dr. João Gaspar da Costa.
Que pena que não sorrisse... lá teria as suas razões ponderosas... porque, de certo, sofria com o não poder caminhar « on the suny side of the streets », celebrado pelo trompete mágico do Louis Amstrong.
Rui Abrunhosa
A tempo: As fotografias 2 e 3 sâo do arquivo da CASA DA ESCRITA, sediada no centro de Coimbra, junto à Sé Nova e retiradas, com vénia e agradecimento, do respectivo "sítio electrónico". A imagem da figura 1 resulta de um desembaraço recreativo do escriba, a partir de Foto de grupo com os Professores do "Licev" por meados dos anos cinquenta.
______________
0 Comentários:
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial