UMA PÁGINA PELO DR. CRUZ MALPIQUE - 1
Lendo e relendo não me ficam dúvidas... : fez o seu Auto Retrato.
D. Carolina Michaelis de Vasconcelos, através de citação que o "pintor" lhe vai buscar à «A Infanta D. Maria de Portugal» (pg 74, Porto, 1902), introduz o quadro com a seguinte afirmação:« A verdadeira cultura, excluindo ostentações pedantescas, obriga a uma longa e árdua iniciação, e leva-nos a esquecer o nosso pequenino eu. Quem estuda a sério já não se preocupa demasiadamente,num egoísmo acanhado, da sua pessoa e do seu gozar. Quem estende a vista pelo Universo, sente dilatar-se, não só o seu intelecto, mas também o coração, e fica mais apto a compreender- tanto a humana pequenez, como os deveres sociais, e a cooperar na solução de magnos problemas que agitam o mundo».
RETRATO DO HOMEM CULTO
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É um homem culto aquele que, de uma só vez, possui visão filosófica do mundo, conhecimento exacto da sua situação social, personalidade bem vertrebrada, que timbra em passar de humanus a humanior, propelido por infatigáveis desejos de perfeição pessoal, e que se interessa pelo bem da comunidade como se fosse o seu próprio.
Ser culto - no sentido integral desta palavra - não implica necessàriamente que o homem seja sábio. Sem sombra de paradoxo, podemos dizer que existem sábios incultos, e homens cultos que estão longe de ser sábios. É que a cultura autêntica, como atrás dizemos, implica mais alguma coisa do que a elevação de nível intelectual - implica elevação integral, de corpo e alma. Não é culto o bárbaro moral. Não o é, tampouco, aquele que descura o «irmão corpo» e a educação da afectividade, que lhe permite vibrar com as criaçãos artísticas, com as belezas da verdade, com o inefável distingido da pura contemplação da paisagem
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Se o saber - o simples saber - não é cultura no amplo significado que lhe estamos dando, também não devemos equacionar grau de civilização com grau de cultura. Civilização e cultura situam-se em planos diferentes. Enquanto a civilização se traduz, principalmente, em comodidades materiais- filhas das aplicações prácticas da ciência, e, portanto, da técnica,- a cultura associamo-la, sobretudo, a riqueza de vida interior, e aos conceitos que o homem forma da sua vivência e convivência social. A cultura mira fundamentalmente a dignificação integral do homem. Dá prioridade à qualidade sobre a quantidade(3).
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Um povo- é o caso do americano- pode viver mergulhado em civilização, e, todavia, não primar pela cultura. Um outro - por exemplo o ateniense do século de Péricles- pode possuir uma civilização rudimentar (= comodidades materiais precárias) e, no entanto, encontrar-se a alto nível cultural. Falando assim, estamos pensando nos tipos médios superiores americano e ateniense. Se descermos ao zero da escala social americano e ao zero ateniense, temos de convir que as inferioridades se devem equivaler, não havendo razões para sobrepormos um escravo ateniense a um plebeu americano(4).
A pura erudição - por mais que doa à sensibilidade dos eruditos-- é uma forma de preguiça mental. Quem apenas se preocupa com o pensamento dos outros, nem sequer o repensando por conta própria.- non nova, sed nove - limitando-se a cerzi-lo com requeimadas guitas, não nasceu para usar miolos.
Dá a impressão de grande trabalhador intelectual, mas é favor que se lhe faz, empregando essa expressão. Usa e abusa da memória, transcreve, retranscreve, torna a transcrever e a retranscrever e daí não passa. O pouco espírito que o nosso homem tem procura compensá-lo com o espírito dos outros. E à força de usar do espírito alheio, julga, o desgraçadinho, que gens est et pensare sabet..., como se poderia dizer, parodiando a paródia macarrónica do Palito Métrico.
Há uma cultura para gente maior e revacinada intelectualmente - é essa a cultura superior, profunda, original-, e outra cultura, a de trazer por casa, de escada abaixo, popular, assimilável pelo homem da rua. Da primeira rezará a história, para lhe traçar a árvore geneológica. Da segunda apenas rezarão os livrinhos didácticos elementares. Elementares e... alimentares dos cérebrozinhos incapazes de irem além da almôndega jornalística, a mais fofa e oca das almôndegas culturais.
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Não é que o erudito não seja necessário na vida intelectual. Também o é. Nem todos podem ser águias. Alguns hão-de ser patos marrecos- e estes tambémtêm a sua específica utilidade. As suas escavações do fóssil fornecem ao pensador materiais que este não pesquisaria, por falta de paciência.
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Cada qual para o que nasceu. Não se meta a garboso cavalo aquele que nasceu com as corcovas de camelo, nem a condor a galinha da capoeira. Seja erudito quem para pensador não nasceu. Não se gaste em erudições miúdas quem possui envergadura de inteligência para as amplas prespectivas.
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O pensador cria ideias dignas de serem citadas, meditadas, vividas. O pensador considera preguiça mental a citação. O erudito julga estar trabalhando intelectualmente, com a mera circunstância de citar. O pensador tem, muitas vezes, a coragem de ignorar coisas inúteis. O erudito, em muitos casos, dá-nos precisamente a impressão de ter o heroísmo de conhecer coisas e loisas de pouca utilidade. O saber não está na razão directa das muitas coisas que se sabem- mas sobretudo daquelas que importa saber.
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Esses tais chegam a afligir pela inconsciência com que julgam possuir todas as ciências e arredores, leccionando-as com o à-vontade de quem toma a sua meia-tigela pela concha do firmamento.
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Lavam o seu desplante ao ponto de pretenderem insinuar que são livros abertos, e é como se nos dissessem: folheiem - nos e verão que, entrando pobres, saiem milionários.
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Milionários das ideias dos outros, porque os eruditos citadores, que presumem de tudo saber, são apenas cerzidores das ideias alheias. E, por vezes os desgraçados só citam, das ideias dos outros, precisamente as mais superficiais.
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Cuántos pasar por sabios han querido con citar a los muertos que lo han sido!
Eles bem querem colar a si próprios, as asas da águia. Baldado esforço. O grude não cumpre. Batráquios eram batráquios ficam.
«Só isto sei - e é que não sei nada», dizia o filósofo. O pedante é doutra força, e assim se confessa: «se mais houvera, mais soubera...». O sábio verdadeiro quase não se apercebe de que o é. O pedante constantemente presume de se tratar tu cá tu lá, com toda a ciência deste mundo e a do outro.
O pedante julgaria diminuir-se, se alguma vez houvesse de dizer: «tenho dúvidas a esse respeito»,ou «nada sei desta matéria». Essa coragem a tem o autêntico sábio- e por isso é que ele é autêntico. Humildade intelectual e pedantismo não cabem no mesmo saco.
O autêntico sábio sabe o que sabe e não blasona de saber o que realmente ignora. O pedante é outra loiça: em muitos casos, ignora o que julga saber, e desconhece as funduras da sua ignorância. O gnoti se auton não é filosofia que ele adopte. Nasceu vacinado contra o autoconhecimento.
Sem cultura, o homem é entulho do mundo. É apenas quantidade. Só a cultura - a superior cultura - o promove a qualidade.
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É mais fácil o homem culto desnivelar-se, descendo até á mulher inculta com quem viva e conviva, do que a mulher sem cultura subir até ao nível daquele que a ultrapassa. A fatalidade mais nos inclina a descer quando convivemos com inferiores do que a subir quando convivemos com superiores.
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A nossa cultura tem muito de livresca. Vivemos muito da suffisance livresque, de que falava Montaigne. Em bastos casos, trocamos a crespa realidade pela esfumada fantasia dos livros. Observamos em segunda mão. E até em terceira. Tomamos a nuvem por Juno. Anatólio France lembra, no seu Jardim de Epicuro, aquele tolinho referido por Plínio o Moço que se absorvia no estudo de certo orador grego, enquanto o Vesúvio atirava, pela boca escancarada, a lava bastante para soterrar cinco povoações circunvizinhas...
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Há uma intelegência que cria que é feita de penetração, de invenção, de personalidade sui juris, e outra que é simplesmente funcionamento burocrático, que classifica facto, preenche e alfabetiza verbetes, aplica regrinhas com o automatismo de máquinas, que não tranpõe o pastelzinho do livro escolar, o que marca eternamente passo no mesmo lugar.
A primeira é inteligência com maiúscula a segunda é a caricatura da primeira e não dizemos que seja inútil. Identifica-se, em parte, com a erudição.
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O homem culto é uma inteligência rica em antenas. Ninguém, como ele, para captar os inefáveis bafejados de todos os quadrantes. Ele- e só ele- dispõe de um sexto sentido para visões globalísticas, para descobrir a unidade na multiplicidade, para surpreender: o porquê e a ressonância dos acontecimentos, para tudo compreender, directa maneira de saber perdoar. Está no polo oposto do erudito, menos voltado aos aspectos vivos do que aos aspectos mortos do saber, menos dado a semear no solo facundo do que a recolher na magma do saber perimido. Se o espírito culto é veio de cristalina água brotada da rocha natural, o espírito erudito é cisterna lôbrega, mofenta, onde as aranhas fazem viveiro.
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Mais do que um homem instruìdo, importa ser homem sage. O homem instruído pode não ser sage. O homem culto tem de o ser, necessàriamente. O homem culto é homem de ciência sintonizada com a consciência. O instruído, em muitos casos, fica-se apenas no mundo da ciência. O que é pouco, provado como está que ciência sem consciência mais não é que ruína da alma- no consabidíssimo dizer de Rabelais. É melhor querer e amar o bem do que conhecê-lo simplesmente. O homem instruído conhece o bem. O homem culto, sobre conhecê-lo, quere-o e ama-o. Não é pequeno o acréscimo de um sobre o outro, nem despicienda a diferença que separa essas duas espécies de homens.
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Criticar é esgrimir intelectualmente, é jogar com as ideias, contrastá-las umas com as outras, em atitude lúcida, ágil, more geométrico, nuns casos, com subtileza psicológica, noutros. Por inculto devemos tomar todo aquele dos espiritos que não possua essa qualidade desportiva.
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O camelo das ideias- tal o caso erudito, no sentido pejorativo deste vocábulo,- nunca o podemos tomar por homem culto. O ludismo das ideias é actividade específica dos espíritos cultos. Repare-se que dizemos ludismos das ideias e não das palavras. O desonesto malabarismo das ideias é próprio do sofista, mas o sofista não é homem culto, porquanto a cultura com o significado que lhe atribuirmos é ciência e consciência, agilidade mental e sageza.
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O espírito culto gosta de palestrar, tomando nós esta palavra como sinónima de luta. ( Pale, com efeito, significou, origináriamente, luta corpo a corpo. Daí se passou para luta espírito a espírito, mas luta apenas com o intuito de esclarecimento de ideias). Gosta da polémica, da discussão, segundo o valor desportivo destes termos. Polémica vem de polémos, combate, como discussão tem no seu étimo a ideia de sacudir. Na palestra, na polémica, na discussão, a atitude do homem culto é sempre a mesma: iluminar ideias, dar solidez lógica a raciocínios, não para alcançar vitórias sobre o adversário, mas para esclarecimento pessoal. O homem culto está ao serviço da verdade- ou do que supõe ser a verdade- e por isso mesmo não se amofina se é outrem, e naõ ele próprio, a encontrá-la. Não se sente vexado se, na discussão, é o adversário que a demonstra, e nãp ele. Com Montaigne, dirá: « Je festoi et caresse la vérité en quelque main que je la trouve, et m'y rends alaigrement, et luy tens mes armes vaincues, de loing que je la vois approcher.
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O autêntico intelectual nunca toma atitudes dogmáticas, intransigentes, querendo dar impressão de que fez monopólio de verdade. A sua atitude é de ampla tolerância para as opiniões dos outros, permitindo-se discuti-las, e pedindo para as suas igual tratamento. Não pretende impor a sua verdade, quer colaborar com todos, e quer que todos colaborem com ele, na descoberta da verdade.
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O «talvez», o «parece-me», o «se não erro» ( e outras expressões tão humildes como estas) salpicam constantemente as suas exposições de ideias. Faz todas as diligências para não cristalizar. Renovar-se é o seu programa. A sua verdade considera-a feita de aproximações sucessivas- e não lhe entra na cabeça rejeitar a contribuição alheia, só para se dar ares de original ou se aranha que tira de si própria toda a teia...
Cristalizar seria parar. O verdadeiro intelectual quer ser permanentemente jovem de espírito, não lhe agrada a ideia de dar a tarefa cultural por conclusa. Envelhecer sobre conceitos acabados não lhe agrada. Retomar os temas alheios por novos ângulo, ou retomar os próprios como se nunca os tivesse considerado, eis o seu grande prazer.
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O verdadeiro intelectual ( o da superior cultura intelectual) foge sistemáticamente dos subjectivismos. A verdade objectivamente apresentada, desinteressadamente considerada, lúdicamente conquistada, eis a sua constante preocupação. É humilde perante a realidade. Não se toma de narcismos impertinentes. A modéstia é a sua filosofia.
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A auto-ironia é o seu jeito, se, porventura, nele, desperta a brotoeja do auto-namoro. Jamais se toma da deselegância de promover as suas opiniões a universalizáveis, antes as considera modificáveis, e é sem rancor que aceita quem lhas critique com serena inteligência. Não pede que o adorem, pede que com ele colaborem. Prefere que o discutam a que incensem. Não pede aos discípulos que o sigam em atitudes reverente, mas que o critiquem.
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O espírito de apurada cultura intelectual é simultâneamente amigo da sua pátria e da humanidade. Sabe que, servindo-a com pulcritude mental, está servindo o mundo inteiro. Não lhe passa pelo espírito que, para amar a sua terra, deva detestar as outras. Nem por sombras poderá ser nacionalista, dado o sentido agressivo que esta palavra tomou. Sem deixar de ser cidadão da sua pátria, é-o, ao mesmo tempo, de todo o mundo. Entende que a sua pátria é digna de si própria, na medida em que tomar a atitude de concorrer para a felicidade ecuménica.
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O homem culto não troca a liberdade( não dizemos licença) por nenhuma escravidão, por mais duradoura que esta seja. Para ele, a ordem não é um fim, mas um meio de alcançar uma liberdade de espírito cada vez maior. Não é um sectário político que pretenda por detentor de uma verdade única e insdiscutível na arte de governar.
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Precisamente por ser culto, não coloca na situação ancilar de qualquer política o clima de liberdade em que se deve situar a investigação científica, a criação artística, a tolerancia mútua, e a crítica. Fora do clima de liberdade, não há cultura autêntica, mas apenas um simulacro de cultura, a cultura dirigida, unilateral, filha de imposições ditatorialmente arbitárias. Onde periga a liberdade, logo periga a cultura. Se a esta põem antolhos, automáticamente se deminiu, logo se limita nas sua perspectivas.
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O homem culto é incapaz de cometer alguma das traições a que Julião Benda se referiu no seu famoso livro La trahison des clercs. Em circunstância nenhuma atraiçoará os superiores valores do espírito,para servir um grupo político, uma classe, seja quem for. A tática acomodatícia, a tergiversação, o oportunismo, o suborno, não entram nos seus processos de actuacção social .
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O homem verdadeiramente culto não se enamora das coisas, da máquina, da produção. Tudo isso ele considera subalternizado aos superiores interesses espirituais do homem. Nunca se convenceu de que o homem fosse criado para servir as coisas, mas sempre as coisas para servirem o homem. Do ascendente para este vai ganhando sobre a matéria, sobre as energias da natureza, deve sair sempre um homem mais espiritualizado, e jamais um homem escravizado a essa matéria ou a essas mesmas energias da natureza. O obreiro não foi feito para a obra ,mas a obra para o obreiro. A inversão destas situações é a negação da cultura, esta sempre interpretada no sentido de colocar os interesses espirituais do homem em primeiro plano.
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O homem autênticamente culto, quando pratica o magistério, é menos um transmissor de conhecimentos do que principalmente um contagiador de entusiasmos. Ele, como ninguém, se deixou possuir pelo amor pedagógico, traduzido, essencialmente, no real amor educador ao educadp, neste o gosto do esforço próprio a irresistivél simpatia pelas ideias, os levitadores anseios de perfeição moral. O melhor dos mestres não é aquele que enche cabeças, que ensina técnicas, mas, sobretudo, aquele que leveda entusiasmos criadores, que propele os seus educandos para atitudes de excelsior!, de sempre mais alto, entendida esta fome de altura no sentido de uma civilização interior cada vez maior e mais requintada.
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Os professores que recordamos com mais ternura e com mais intensa grantidão não são os que nos encheram, mas antes, os que nos deram um par de asas. António Sérgio, em Considerações sobre o problema da cultura, refere que Pasteur, a respeito do químico Dumas, dizia : «fui discípulo dos entusiasmos que ele me inspirou».
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Pasteur nao diz : com ele aprendi química pela medida grande como gente crescida; não diz : mercê dele, as técnicas de laboratório para mim não têm segredos. O que ele acentua são os entusiasmos recebidos do mestre. No caso Dumas-Pasteur, o mestre era digno do discípulo, e este digno do professor. Um soube insuflar altos anseios espirituais, o outro deixou-se incendiar por esses anseios,. Ditosos os discípulos capazes de dar íntima e construtiva ressonância aos entusiasmos dos mestres!
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A autêntica cultura não joga com espavento, com estronto, com impertinência, com extravagância, com soberba, com presunção e outras atitudes deste teor. Cultura é essencialmente modéstia, simplicidade, ausência de orgulho. O que não for isso - ainda que o homem tudo saiba - é primarismo, plebeísmo, incultura (5).
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O homem culto, do ponto de vista intelectual, não é atreito aos arrotos do saber, mas antes, e muito discretamente, ensina, sem dar a impressão de falar ex cathedra. O homem culto é aquele que estudou, sem, todavia, parecer ter-se esfalfado a desbastar a sua ignorância; é aquele que apresenta a casa deita, sem que nós suspeitemos de que ela se contruiu com auxílio de andaimes; éaquele que tem estilo, sem querer que nos apercebamos de que esse estilo obrigou à camarinha na testa; é aquele que nos parece inspirado, sem nos lembrarmos das raízes que vão dar a uma prévia transpiração.
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O homem culto nao presume do que não é. Culto (dizia alguém) é todo aquele em quem não vislumbramos que tenha estudado, embora o tivesse feito, ou que, de facto, não estudou, se realmente nao estudou.
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O autêntico saber culto é saber com nítida consciência dos limites. Já é culto quem sabe que nao sabe. A famosa docta ignorantia, de que falou o cardeal alemão Niculau de Cusa, o socrático «sei que não sei», tudo isso são atitudes de uma real modéstia que dizem à maravilha como o saber culto.
O homem culto não é necessariamente aquele que presume de repetir a proeza picomirandolesca de discorrer de omni re scibili, et quibusdam aliis. Ninguém aí hoje poderá discorrer pormenorizadamente sobre todos os problemas . E se alguém surgisse com essa pretensão, deveríamos ter compaixão do pretensioso. A cultura é feita em larga parte de problemática. Já é culto - muito mais do que o é o erudito de miudezas - aquele que sabe formular inteligentemente problemas, e que os sabe situar no devido lugar da hierarquia das ciências e dos interesses humanos. A perfeita cultura caracteriza-se essencialmente por uma justa perspectiva. O homem culto não tem solução pronta para todos os problemas de especialidade que lhe apresentem, mas possui o sentido topográfico do locus ubi, do lugar onde poderá colher os elementos para a resolução desses problemas. «Sabe onde está aquilo que não sabe», no dizer de certo autor. Sabe orientar-se no emaranhado das dificuldades. Possui o agudo sentido das suas lacunas, mas não ignora a maneira de as preencher, sobrando-lhe recursos intelectuais para se desobrigar dessa tarefa (6).
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O homem culto não é o da oratória rotunda, badalando, a toda a hora, o sino grande da ênfase. Para falarmos à fina e à grega, não é o homem da macrologia, sempre pronto a transformar argueiros em cavaleiros, apresentando razões (aparentemente grandes razões – no fundo grandes e enfunadas palavras) para justificar pequeninas coisas. De facto, a retórica do homem inculto – mas que, aliás, presume de culto – mira menos a verdade do que a dar aparência de fortes a razões débeis, conseguindo (sem se aperceber disso) tornar débeis razões fortes. O homem rigorosamente culto não é o discursador ore rotundo é, pelo contrário, o simpatizante com o brevilóquio, o diálogo, o colóquio, o cotejo das ideias, numa esgrima de agilidade mental, de dialéctica esclarecedora. O homem culto é um espevitador de espíritos, mercê da sua atitude coloquial. O orador – no que esta palavra ganhou de pejorativo – é apenas um entorpecedor desses mesmos espíritos. Um, no brevilóquio, acorda inteligências mais ou menos adormecidas. O outro – o canastrão da retórica – opera apenas de narcotizante. É largo no falar, largo no escrever, mas é de extrema penúria de ideias, em toda a sua incontinente logorreia. Os sofistas, que precederam Sócrates, eram os homens da oratória de galeão. Sócrates – como espírito superiormente culto que foi – zombou desse falar enfunado e meteu-se pelos caminhos do falar dúctil, maleável, esgrimidor, do diálogo, em que os interlocutores não podem avançar sem se irem esclarecendo mùtuamente.
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O homem culto – verdadeiramente culto – é o espírito da visão larga, capaz de abarcar a totalidade do real nas múltiplas facetas deste, e que a todas sabe articular num conjunto harmónico (7). Para tanto – que é imenso – terá, pois , amplos conhecimentos da filosofia, de ciência, de arte, de sociologia, de história, de literatura, o que não quer dizer que as possua na qualidade de apertado especialista, mas num plano de inteligente generalidade. Não é forçoso que o homem culto seja autor de sistemas filosóficos, investigador científico, artista profissional, escritor de sua profissão, embora possa ser alguma dessas coisas. A cultura, no alto sentido deste vocábulo, é, primordialmente, uma atitude intelectual de largueza de vistas e de afinado espírito crítico diante da realidade total, que não é apenas a telúrica mas a social também, que abrange toda a actividade humana. Deixaria automaticamente de ser culto o homem que ficasse hermético á compreensão dos factos políticos, que não entendesse o alcance duma corrente estética, dum sistema filosófico, de certa moda literária; o homem que não percebesse o peso do factor ciência, técnica ou economia na evolução dos povos, que carecesse da penetração bastante para intuir o inefável do misticismo na vida da humanidade; que ficasse indiferente perante uma grande realização industrial ou perante a beleza dum poema literário ou musical.
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O insofismável homem cluto é um espírito prospectivo, o que não quer dizer que se alheie do presente e do passado. Sabe, como ninguém, correlacionar épocas. Não vê no presente um produto de geração espontânea, articula-o ao passado, do qual o tem como lógico e natural corolário. Interessa, portanto, ao homem culto a tradição, não para se enamorar dela em atituide romântica, mas para concluir que não é proles sine matre creata.
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Com tais exigência, dir-se-ia, não há muitos homens cultos. E não há de facto. É que a perfeita cultura não se obtem de mão beijada. Sobre exigir um natural talento ou génio, requer ainda o indefesso trabalho intelectual, a larga ruminação interior, tudo isto concomitante de olhos e espíritos bem abertos para o mundo geográfico e social, para os horizontes não apenas de campanário, mas ecuménicos
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(5) Os alemães usam a palavra Kultur para designar civilização. Reservam a palavra Bildung para aquilo que nós no texto designamos com o nome de cultura - isto é: trabalho de auto-modelação, auto-domínio, em que o homem se vai constantemente promovendo de homem a mais homem.
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