O GRILO COXO
PROF. AMADEU SARAIVA REGADA
Pouco posso dizer
Tive com ele um convívio minúsculo.
Qualquer coisa como pelos 10 ou 15 de Outubro de 1947, era uma sala com um anfiteatro de 5 ou 6 degraus, de tosca madeira, suja dos pós em que se transformaram as lamas dos sapatos do anterior ano cantantocolectolectivo e, ainda, um orgão de bufar com os pés, que eu, com a minha profunda ignorância musical - 10 anos de idade - nunca tinha visto. Era de madeira, de tom acastanhado, desbotado pelo tempo, com uma fisionomia triste. Por baixo de uma caixa que fazia barulho e tinha um teclado com dentadura branca e negra, viva, havia duas tábuas presas numa ponta mais levantada, por uma correntinha que se dependurava do perineo da caixa, Sobre as tábuas dançavam,enigmaticamente, dois pezinhos de estranhas botinhas onde, dos lados, se prendiam ferragens.Pareceu-me que trepavam, por dentro duma calça cinzenta, através de uma misteriosa cadeia de peças metálicas até um algures alto nos dois muito curtos membros inferiores. Encostada ao lado direito do órgão estava uma bengala, curta e modesta. Barata..
Sobre o anfiteatro sentavam-se 31 gargantas. O programa da aula consistia em se avaliarem as capacidades e qualidades que cada um de nós teria para poder cantar em um orfeão. Eu era o 27 e, por isso, só já fui avaliado na aula seguinte. Os que tinham a chamada boa voz eram confrontados durante um tempo apreciável com o suar do orgão tocado pelo Professor Regada. E chega a minha vez. Já me não lembro qual seria a peça musical, mas admito que o Hino Nacional. Com uma cabeçada para a frente depois de uns movimentos estranhos com os ombros é-me dado sinal de iniciar o canto em consonância com a música. Talvez tenha tido a grande oportunidade de enunciar numa voz supostamente cantante três, quatro ou cinco palavras, lá do texto da cantoria, quando sou bruscamente interrompido pela paragem súbita do orgão e um gesto alargado com a exclamação: "este já está". Estava feita a pronúncia. Eu não tinha nem voz nem ouvido. Nada. «Podes-te sentar» e assim fiquei à espera, sentado, de que acabasse o ano escolar daí a 9 meses. Foi esta toda a minha convivência e experiência com o Professor Regada.
Não era muito expansivo durante o treino, digamos assim, que ao longo do ano ia fazendo com os que tinham ouvido e voz. O treino ora era solitário ou em pequenos grupos de pequenos cantores. À medida que o ano ia andando, agora e logo, os grupos iam-se reunindo e fazendo mais barulho em grupos maiores. Já eram ouvidos no corredor. Depois das férias de Páscoa havia já a noção de quem poderia afinal aspirar a vir um dia a ser componente do Orfeão do Liceu Alexandre Herculano.
Tenho como únicas lembranças do Professor Regada o vê-lo passar nos corredores apoiado na sua bengala e com o passo próprio de quem tivera paralisia infantil, num tempo em que não havia ainda a vacina contra o vírus da poliomielite. Pouca sorte teve o Prof. Regada quando o sacana do vírus se lembrou de com ele vir ter.
O Professor Regada tinha porém a capacidade de atracção do interesse de alunos que o quisessem ouvirconversando com eles depois de acabadas as aulas. O canto coral era em geral ao fim do dia. Estou a ver o Professor Regada de tronco forte, cabeça levantada e perna curta pela Avenida Camilo abaixo completamente tapado por um enxame de alunos que todos os dias o acompanhavam Avenida abaixo, de orelha esticada para lhe ouvirem o que dizia. Tinha que dizer coisas muito importantes. Ou, de outro modo se não entenderia o porquê do enxame. Nunca participei numa secção destas. Não sei o que nelas se conversava. Sei que este era o perfil generalizado dos Professores que fui encontrando durante os 7 anos que trabalhei como aluno do Liceu Alexandre Herculano.
Tinham um "je ne sais quoi" de magnetismo com que eram sempre atraentes quando ensinavam e quando educavam.Não era muito expansivo durante o treino, digamos assim, que ao longo do ano ia fazendo com os que tinham ouvido e voz. O treino ora era solitário ou em pequenos grupos de pequenos cantores. À medida que o ano ia andando, agora e logo, os grupos iam-se reunindo e fazendo mais barulho em grupos maiores. Já eram ouvidos no corredor. Depois das férias de Páscoa havia já a noção de quem poderia afinal aspirar a vir um dia a ser componente do Orfeão do Liceu Alexandre Herculano.
Tenho como únicas lembranças do Professor Regada o vê-lo passar nos corredores apoiado na sua bengala e com o passo próprio de quem tivera paralisia infantil, num tempo em que não havia ainda a vacina contra o vírus da poliomielite. Pouca sorte teve o Prof. Regada quando o sacana do vírus se lembrou de com ele vir ter.
O Professor Regada tinha porém a capacidade de atracção do interesse de alunos que o quisessem ouvirconversando com eles depois de acabadas as aulas. O canto coral era em geral ao fim do dia. Estou a ver o Professor Regada de tronco forte, cabeça levantada e perna curta pela Avenida Camilo abaixo completamente tapado por um enxame de alunos que todos os dias o acompanhavam Avenida abaixo, de orelha esticada para lhe ouvirem o que dizia. Tinha que dizer coisas muito importantes. Ou, de outro modo se não entenderia o porquê do enxame. Nunca participei numa secção destas. Não sei o que nelas se conversava. Sei que este era o perfil generalizado dos Professores que fui encontrando durante os 7 anos que trabalhei como aluno do Liceu Alexandre Herculano.
Rui Abrunhosa
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2 Comentários:
Fui aluno do prof. Regada (nós chamávamos-lhe Regadas, com s no fim) por volta de 1960-61 ou 1961-62. Recordo-me perfeitamente da sua figura baixa, atarracada, cambaleante e sempre agarrado a uma bengala, em resultado de uma poliomielite. Não tenho muitas recordações dele. Mesmo assim, recordo a sua bonomia, da qual resultava que as suas aulas eram um bocado barulhentas, por causa dos nossos verdes anos, mas não indisciplinadas. Apesar da sua deficiência física e de nós termos uma idade em que por vezes éramos cruéis para com os diferentes, sem medirmos as consequências da nossa crueldade, o prof. Regada sempre foi muito respeitado por nós. A nossa crueldade nunca o tomou como alvo. Quanto ao "enxame" de alunos que o acompanharia pela Av. Camilo abaixo, sinceramente não me recordo de tal, mas admito perfeitamente a existência de tal "enxame". O prof. Regada era de facto muito respeitado pelos seus alunos.
Muito obrigado por me ter avivado a memória relativamente a um dos mestres em que o Liceu Alexandre Herculano era fértil.
Rui Abrunhosa disse
Em 1961 licenciou-se em medicina o escrevinhateiro. Recapitulando, temos 14 anos de distancia.
Continuam todavia,mais numerosas as semelhanças do que as diferenças.Esqueci referir detalhe que me intrigou.
O Professor Regada antes de dar início ao canto, levantava o braço, esquerdo, deixava a mão suspensa , metia uma cápsula de Prozac entre os lábios, dava um assobio estranhissimo e, de duas mãos erguidas, atirava com as gargantas ao ar !...
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