LAH1954

um blog de antigos alunos do Liceu de Alexandre Herculano, do Porto

sexta-feira, 23 de abril de 2010

A POSTERIDADE JÁ AJUIZOU


A PRIMEIRA E - 57 ANOS DEPOIS - A MAIS RECENTEMENTE PUBLICADA
PÁGINA DE MANUEL ALEGRE

«Esta é a página dos poetas que talvez ainda um dia venham nas Histórias da Literatura»

Assim se lia em 31 de Janeiro de 1953, a toda a largura das paginas centrais , a 4 e a 5, do primeiro número do Prelúdio. No canto superior da página da esquerda - primas! terá reclamado o Avô Manuel, como se fosse iniciar com os Netos uma corrida de sameiras.... Lá continua, a reluzir, no mesmo canto, na mesma página, a da esquerda, no mesmo número, o de 31 de Janeiro, o que julgo ter sido a primeira publicação, em letra de fôrma, d'o miúdo que pregava pregos numa tábua.
.
Ora topem, aí, logo por baixo. Fui lá - digitalizá-la. Cliquem no camtinho inferior direito do visor do vosso computador e verão que já com ela se deleitarão, na sua leitura, com todo o conforto.
.


.
Já estava com ela, a mensagem, meia artilhada, só à espera de uma fendazinha no tempo para satisfazer o apetite que me deu de dizer o que a seguir se apresenta. Eis se não quando o Zé Miguel bota a mensagem aí de baixo. A pancada tinha-se-me dado, quando, passando na rua Júlio Diniz, no Porto, vi, na montra da Bertrand, acabado de ali ser exposto, o último trabalho literário de Manuel Alegre. A capa acordou-me de relâmpago a "mostricadela" que fiz no meu indicador esquerdo com um martelinho, muito simpático, muito aconchegado à minha mão, que meu Pai me oferecera e com que também eu, pelos meus cinco ou seis anos pregava preguinhos, de pequeno porte, em tábuas de madeira mole que só havia nas matas dos Dembos, em Quibaxe, sim, sim... exactely, em Angola... Oh! yes... Foi lá que fiz a minha infância, pregando pregos numa tábua, mole, com os meninos da Banza de Quibaxe. Um deles, que era barrigudo, de olhos muito brancos e pele muito negra, tinha o umbigo como se fosse um pequeno limão, aproveitava as alturas diferentes dos pregos para, com as unhas, dedilhar rítmo musical. O quisange estava-lhe na massa do sangue...
.
Que "mostricadela"! O meu dedo ficou preto, duas ou três semanas, a unha saiu quase dois meses depois e a experiência permitiu-me horas de contemplação dos interessantissimos fenómenos fisiológicos e de auto-reconstrução. Foi uma martelada que me doeu muito, mas me deu muito que aprender. Como acontece com todas as Marteladas da Vida se delas soubermos tirar o suminho da lição.
.
Era trinta e um de Janeiro de mil novecentos e cinquenta e três. Saiu do Prelo o primeiro numero da Gazeta dos Alunos do Liceu Alexandre Herculano. Eclodiu. O PRELÚDIO.
.
Na sua página frontal, o Professor Orientador - assim o designava o artº 485 do dec. 36508 - o Dr. Manuel da Cruz Malpique fazia um «aviso aos leitores com muita letra e ... treta»: «A colaboração literária dos rapazes deixa necessariamente a desejar. Eles fazem o que lhes é possível. "Pilriteiro que dás pilritos..." . O Professor-Orientador nada retocou - até para que a posteridade possa ajuizar do verídico (ou não verídico) talento dos rapazes.»
.
As páginas 4 e 5 deste primeiro número do Prelúdio eram as centrais, ou seja, o jornal tinha um pouco a classe, a altura, a elegência, o alcance, do Times (of London) ou do New York Herald Tribune, isto é, a profundidade que só oito páginas podem dar.
.
A toda a largura, ao cimo destas duas páginas, o título era, a letra gorda e a atirar prógótico: «Esta é a página dos poetas que talvez ainda um dia venham nas Histórias da Literatura...».
.
Por respeito ao rigor científico e à verdade que sobra nos trambulhões da memória ,tenho de dizer que este título é criação do Dr. Cruz Malpique. Quando eu lhe mostrava as provas e nelas estava lá qualquer coisa outra que já não lembro, ele, quedando-se de lapinhos no ar, trejeitou contrariedade e comentou-me, não com estas palavras, mas, no fundo, com esta ideia: era piroso. Propôs então o que lá está. Ah! Ganda Malpique!!!... que perspicácia premonitória!
.
Todos os autores que publicaram no primeiro número do Prelúdio foram entregando a qualquer dos três redatores as respectivas produções. Um dia, o Dr. Cruz Malpique, quando eu passava no corredor, junto à porta da sala onde acabara a sua aula, interrompe-me a passada e diz-me que "um aluno do 5º ano"(sic) lhe tinha entregue "isto", e estende-me um papel, com mão firme e pálpebras tremelicadas, num acessozinho de timidez, para me referir que o aluno lhe tinha entregue, pessoalmente, em sua mão, este trabalho, ... porque lho tinha dedicado. E aí está! lá em cima, a primeira - presumo - publicação literária assinada por M. Alegre Duarte - Manuel Alegre, after all.
.
Na contra capa da obra agora acabada de publicar por Alegre, sua, ... sua Alma, escreve assim:
«Entretanto o miúdo cresceu, quer seja o que pregava pregos muito direitos numa tábua, quer o que engoliu os comprimidos do avô, quer o que se revelou contra a humilhação das mangas curtas, quer os outros todos ou eu próprio que não sei se fui cada um deles menos um, este que conta e tem tendência ora a efabular ora a querer ser tão verdadeiro que põe em dúvida o que de facto foi e até de si mesmo suspeita. Seja ele quem for, o certo é que o miúdo cresceu.»..........
.................................................................................................. Vida de tantas vidas na tão curta Vida.
.
Debrucemo-nos então na sua última página desta sua última obra:
.
Um livro escreve-se de trás para a frente e da fente para trás, um passo a diante dois passos à retaguarda. Ou ao contrário. Na escrita e na vida. O miúdo que pregava pregos numa tábua está agora a brincar às escondidas com os netos gémeos. Conta até vinte e vai procurá-los. Um deles diz: "Estou dentro do armário." Não gosta de ficar fechado. O avô também não. Mas, há quarenta e tal anos, fecharam-no numa cela da prisão da Pide, em Luanda.
Dedilhou então na parede o alfabeto das prisões, mas não obteve resposta, nem da direita nem da esquerda, por mais que os seus dedos batessem nas teclas invisíveis as letras das palavras proibidas, nenhum sinal de um lado ou do outro, as celas estavam vazias, soube depois, e ele estava a apelar para ninguém. Os nós dos dedos batiam nas paredes sujas o ritmo da incomunicabilidade e o miúdo que pregava pregos numa tábua pensa se não será esse o ritmo da escrita, palavras para ninguém, quer as que escreve agora num caderno de páginas brancas quer as que baterá depois nas teclas do computador, quer as que dedilhou outrora quando estava preso, palavras redigidas à mão, palavras tecladas, palavras batidas com os nós dos dedos numa parede, palavras para ninguém.Dias e noites sem dormir. E o escrivão, que tinha andado na casa do Gaiato: -Já vamos na terceira noite, não tarda vai começar a ver monstros e bichos, cobras e escorpiões. - O único que vejo é você - retorquiu aquele que viria a ser o avô que anda agora a brincar às escondidas com aos netos, quando, na prisão de S. Paulo, em Luanda, estava a ser interrogado pela Pide. Deram-lhe papel e lápis para ele redigir uma confissão e ele começou a escrever todos os versos que sabia de cor, enquanto um escritor angolano, numa cela próxima, assobiava, de madrugada, uma canção russa, para o miúdo que recitava as caravelas saber que não estava só. Coisas do arco da velha. Como as da escrita. Estou aqui a esconder-me e a mostrar-me, como o neto no armário e o outro a trás da porta. O melhor é contar até vinte enquanto eles correm a esconder-se ansiosos por serem descobertos. Como eu.»
.
.
Lisboa, 22/11/200.
.
Manuel Alegre de Melo Duarte
.
... e termina com o fac simile de sua assinatura.
.
*
Avisava o Dr. Malpique, na página frontal:"para que a posteridade possa ajuizar do verídico (ou não verídico) talento dos rapazes....
.
E prognosticava nas centrais , ...«poetas que talvez ainda um dia venham nas Histórias da Literatura....».
.
Cumpriu-se. A posteridade já ajuizou . Manuel Alegre Duarte já lá canta, nas Histórias da Literatura Portuguesa . Canta. Encanta. E cantará!...Trovas do Vento Que Passa ... e Todas as Outras...
.
Gostei muito do livro. Fez-me sentir a dor da "mostricadela"(1), pela martelada que me dei quando tinha chegado de colher tangerinas. Fez-me sentir a Alegria que se colhe quando se jardina o Génio.
.
Rui Abrunhosa
___________

A Foto do Rosto do Poeta Manuel Alegre é do Autor e vem publicada na "orelha" da contra capa da obra. Tomei todavia a liberdade - e atrevi-me ao desplante - de a adaptar a esta outra circunstância.

(1) - Admito perplexão, entre os bípedes de histórico exclusivamente urbano, ante o termo "mostricadela". Aos "pategos da cidade" que possam sentir essa dificuldade, direi: essa é a palavra com que se define nas genuínas aldeias de »Traz os Montes» a lesão provocada num dedo da mão, por exemplo, com uma martelada que fugiu ao controle electrónico e por satélite, através de um telemóvel. Aprendi-a com os meus amigos da 4ª classe com quem ia para os lameiros guardar bois, montar esparrelas para apanhar verdelhões, espreita-couves , e pintarrôxos (hoje custa-me esta memória). Também apanhávamos lagartos, lagartixas, rãs, sapos e salamandras. Agora o único sapo que tenho é o do e-mail. Tenho-me farto de os engolir. Uma Porra!...

--------.

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial