LAH1954

um blog de antigos alunos do Liceu de Alexandre Herculano, do Porto

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

PENSAR ESCREVENDO, ESCREVER PENSANDO - 1ª parte.





uma página por Cruz Malpique



Em 1976 a Liga Portuguesa de Profilaxia Social publicou o seu opúsculo número 42 com a conferência realizada pelo Dr. Cruz Malpique no Clube Fenianos Portuenses, em 5 de Dezembro de 1973 a que deu o título que agora, e a seguir,  reproduzimos.

Atravessa a sociedade portuguesa desde há já algumas décadas o  gravíssimo problema da educação dos seus cidadãos. É conhecida a preocupação que o Dr. Cruz Malpique sempre mostrou no relativo às condições pedagógicas que têm de rodear e promover o alcance de processo educativo para uma inteira vida inteira de cada um de nós.

Reli há duas ou três semanas o texto dessa conferência. Fez-me sentir um calor de alma pela felicidade de ainda ter esperança de um dia nós, portugueses, todos, virmos a ser capazes de construir o edifício educativo que de cada um de todos nós faça o que cada um de nós é, potencialmente. Achei em conversa entre mim e mim que poderia ser valioso pôr à disposição de quem tenha a sorte de, através do nosso blog, vir a ler o texto desta conferência.

Numa perspectiva de confecção de uma qualquer colaboração para  blogs deve ser tido em conta um certo constrangimento no que respeita à extensão dos textos. Relanceando um olhar sobre os nossos jornais da segunda infância - O Mosquito, o Diabrete ou o Cavaleiro Andante - ocorreu-me o sofrimento da chegada à linha onde, entre parênteses, estava, solitariamente, a palavra, continua. Com mais luxo também diziam continua no próximo número. Em consequência, encontramos a solução para a publicação completa do texto desta conferência, partindo-a em vários bocados, sempre prometidos pela palavra continua. Talvez o tal sofrimento do continua vos desperte a curiosidade, e o interesse, pelo episódio seguinte. O processo psicológico é igual ao das telenovelas e, mais antigamente, aos folhetins de Camilo, Eça,  Ramalho, mais recentemente o meu colega João Araújo Correia, enfim, de muitos outros belissimos escritores. Estes folhetins, em geral, apareciam estampados numa barra com mão travessa de altura , no fundo dos fundos da última página dos jornais diários..

Vamos portanto dar início à publicação do trabalho do dr. Malpique sobre as responsabilidades do Mestre e do Discípulo na construção da Pessoa, de cada Pessoa, com a originalidade irrepetivel que cada uma delas é. Escreveu-o em Dezembro de 1973. Tinha 71 anos.






1919 ~DR. CRUZ MALPIQUE, ESTUDANTE. 17 ANOS DE IDADE


   « O BINÓMIO MESTRE-DISCÍPULO             Duas Súplicas e Um Juramento


Suplica (quase enfática) do Mestre (que se estreia), dirigida às Musas da pedagogia      

1 - Eu sei que o magistério é honor, mas sei, outrossim, que também é - e principalmente - onus, o que, dito em português de lei, se pode assim exprimir: eu sei que ensinar é uma honra, mas sei também que, a par disso, é um peso, e dos maiores. A honra é o inefável da profissão. O peso é o trabalho extenuante de todos os dias, para abrir os espíritos à luz da verdade, às emoções do belo, aos sentimentos de uma doce humanidade.
Pois dai-me amor, tal e tanto, que eu possa sem desfalecimentos, abrir esses espíritos para a luz da verdade, para as emoções do belo, para os sentimentos da doce humanidade. Fazei com que eu consiga o milagre - que o não há maior - de lapidar brutos diamantes, para que de si, despeçam todo o fulgor possível; de fazer da natureza humana uma obra prima de curiosidade alerta para todos os segredos do mundo, uma inteligência capaz de ler as relações que ligam as coisas entre si; uma vontade capaz de vencer todas as adversidades; um poder de iniciativa que meta todas as lanças na áfrica das dificuldades; um espírito crítico que deite por terra todas as superstições; uma fé que remova todos os obstáculos à realização de um mundo melhor.

2 - Fazei que eu consiga insinuar na alma dos meus alunos o formoso dito de Lessing: "Se Deus me desse, na sua mão direita, a verdade já acabadinha, e, na sua mão esquerda, a possibilidade de eu a descobrir pelo meu próprio esforço, não hesitaria: eu me decidiria pela segunda dádiva, contra a primeira".

3 - Dai-me discípulos que de mim precisem, só temporariamente. Sei, com saber de experiências feito, que os discípulos que mais honram os mestres não são aqueles que os seguiram servilmente, mas antes os que, em tempo oportuno souberam conquistar a sua carta de alforria. Nada melhor do que passar pelos mestres, com a condição, porém, de tudo fazerem, para deles se libertarem, com rumo à sua individualidade específica. Dos discípulos subservientes não reza a história, a não ser para lhe dar as zabumbadas da troça.
O educador, para merecer este título, deve ser, acima de tudo, um electrizador de espíritos, um catalisador de específicas originalidades. O seu papel não é substituir-se ao educando, mas, pelo contrário, propiciar que este se afirme, o mais possível, sui generis e sui juris. Criará nele o sentimento da auto-desconfiança, a fobia de tutelas que lhe minimizem a personalidade. Despertará nele o gosto da  resposta de conta própria, contra a resposta meramente psitacista.

4 - Fazer que eu, sendo embora mestre por natural vocação, não me dispense de assimilar a experiência doutros mestres. Não quero ser acusado do pecado da soberba, que consiste em supor que sou capaz de tirar de mim mesmo toda a teia, às maneira da aranha. Não quero eu dizer como certos idiotas, segundo os quais a experiência alheia, é tal que, com ela ou sem ela, a pessoa fica tal e qual... Sinto-me no dever de me aperfeiçoar, hoje mais do que ontem, amanhã mais do que hoje, e para cumprir essa obrigação deontológica a experiência alheia muito me pode aproveitar, se conjugada com a minha própria. Tola seria a presunção de me conmsiderar de uma originalidade absoluta, tendo eu chegado muito tarde a um mundo já muito velho. Com efeito, como o poeta, sinto ganas de dizer:

"Je suis venu trop tard dans un siècle trop vieux".

Fazei que eu, dia-a-dia, aprenda com os outros mestres e com os meus próprios discípulos; e, de facto, muito tenho aprendido com estes, provado como está que docendo discendo. 
A teoria e a experiência pedagógicas devem ser aproveitadas, venham donde vierem. E é até frequente virem de fora da escola oficial. Rousseau não era professor oficial. Tão-pouco Montaigne, nem Rabelais. E todavia deram directrizes admiráveis ao ensino. Por mais paradoxal que possa parecer, as grandes reformas pedagógicas (exactamente como as grandes descobertas e invenções científicas) não promanaram das escolas oficiais.

5 - Fazei que eu leia sempre de caneta na mão, tomando as minhas notas, não para as citar, com chamadas a um roda-pé erudito. Fazei que eu tome as notas como pretexto para meditação pessoal - mas meditação escrita. Sei, de experiência, que a caneta é óptima parteira do espírito. Fico surpreendido com o que ela me tem revelado, e de que eu nem sequer suspeitava! Pouco adianta, a reflexão feita no cadeirão preguiçoso, nós a tirar baforadas do cigarro, e a esmagar-lhe a cinza, com a unha à catita ...

6 - Fazei que eu não transforme os meus alunos em papagaios, a quem, as palavras ficam curtas no bico. Psitacismo, nem pintado! Fazei que eu ensine os meus alunos, essencialmente, na base da experiência, de tal modo que as palavras por eles proferidas não tenham o valor de cheques sem cobertura. Está de há muito averiguado que "saber de cor não é saber". Aprender fazendo - learning by doing - tal deve ser a divisa numa escola que tenha no seu programa servir a vida. escola só uma se tolera em nossos dias - a escola activa, na qual os alunos se preparam realmente para os honrados triunfos na vida.

7 - Que me seja, pois, dado ensinar em escola activa, a do aprender fazendo.
A escola activa - com trabalhos manuais: de carpintaria, de serralharia, de encadernação, de ... - tem valor pela destreza que traz às mãos, e porque pode ser - e é - uma compensação do trabalho intelectual.
Mas, para além disso, tem valor, porque dignifica uma actividade que aos olhos dos primários do alfabeto, descategoriza. Esse trabalho liberta-nos da superstição do puro livro como instrumento de cultura.
Não há razões válidas para que o trabalho intelectual despreze o trabalho manual. Tão-pouco as há, para justificarem que o trabalho manual vote ao desprezo o trabalho intelectual.
É preciso eliminar os preconceitos que separam essas duas espécies de trabalho. E hão-de realmente desaparecer, no dia e hora em que o músculo se intelectualizar um pouco mais, e a inteligência se musculizar o necessário
O homo faber tem que ganhar seu quê de homo sapiens, e este, por sua vez, um pouco do homo faber.
Importa fazer das coisas, dos factos, dos fenómenos, tema e ...teima. Palavras desalicerçadas desse mundo concreto são simples palavras, ou sopros de voz. Com a nossa educação psitacista só psitacistas podemos formar. Papagaios e só papagaios. O que o aluno quer não são palavras, meras palavras, mas a realidade flagrante, sensível, experimental. Daí é que se deve partir. Nada de alunos psitacistas! Dos alunos psitacistas que só mostram boa boca para o memorialismo que deles exigiram, bem podemos dizer, com Berkeley: «são incapazes de levantar o cortinado das palavras para verem a realidade das coisas». Não têm sombra de iniciativa. Não sabem de que cor é a originalidade. São meros receptáculos de palavras. Carecem do gosto da investigação por conta própria. Apenas sabem repetir. Não sabem ler dentro das coisas, nem as sabem relacionar. Numa palavra: não são inteligentes, no sentido etimológico desta palavra. Com efeito, ao que dizem os etimologistas, inteligência tem que ver com intus+legere (ler dentro das coisas), ou com inter+legere (ler as relações entre as coisas).
Toda a educação, para realmente merecer o nome, será da qualidade de exercitar e fazer agir o educando, levando-o a um exercício bem pessoal, espontâneo, livre. O pássaro nasceu para voar como o homem para trabalhar. A acção está na própria estrutura psicológica do educando, que detesta a passividade - quer física, quer mental. A escola cumprirá a sua missão, na medida em que suscitar um clima de acção, no qual o aluno se sinta como peixe na água. Corpo e espírito pedem exercício, sob pena de se ancilosarem. O corpo requer o desentorpecimento. O espírito pede problemas, para que a si próprio diga: penso, logo existo.
O grande professor será, pois aquele que tudo propicie ao educando, no sentido de ele se poder afirmar como criatura marcada para a acção. Já alguém disse que, da parte do professor, o que verdadeiramente vale não é aquilo que ele faz, mas, sobretudo, aquilo que leva o aluno a fazer.
Se, portanto, o educando é, de sua natureza, um ser que pede actividade de corpo e de espírito, dê-se-lhe a escola que lhe está a carácter - a escola activa.

8 - Fazei que eu não abuse da minha autoridade, querendo os meus alunos em silêncio profundo, quando, em boa verdade, comigo deviam dialogar. O monólogo puro fez seu tempo. Sob certo aspecto, a aula ainda quando não é laboratório de Física ou Química, ou doutra qualquer ciência da Natureza, é laboratório da palavra, colocada ao serviço do jogo das ideias hauridas nas mais variadas vivências. Importa que a aula seja pretexto para conversa viva sobre os temas do programa, e o ponto de partida serão dúvidas a resolver, objecções a opor.
A autoridade do professor é indispensável para que se mantenha certa disciplina, sem a qual reinaria a anarquia - e na anarquia ninguém se entende.
A educação é um binómio - o binómio mestre-discípulo. Não basta que o educador morra de amores pela sua missão, importa que o educando se mostre dócil aos desejos do mestre.
Como obter, porém, essa docilidade? Indo ao encontro das características biopsicológicas do educando, sem o que nada feito, ou tudo mal feito. O educando não é uma entidade abstracta, não é uma criatura estandardizada. Cada discípulo tem seu quê de específico.
A educação tem que ser primordialmente obra do educando. O mestre será, essencialmente um catalisador positivo das virtudes do seu discípulo. Exercerá uma função de estímulo, se quisermos falar à latina, ou em função hormonótica, se houvermos de nos exprimir à grega... O mestre, na verdade, deve ser agulhão; deve ser um parturejador das qualidades do seu discípulo.
A autoridade do professor é, de certo, necessária, junto do educando. Mas deverá ter sempre um papel majorativo, relativamente à personalidade do aluno. Fará que esta cresça, que se afirme. a autoridade só tolherá a liberdade do educando, na medida em que esta o prejudique, transformada em licença arbitrária. Dando particular atenção à pessoa do discípulo, não se vê que o mestre o esteja adulando. Está apenas fazendo que não se perca uma personalidade. Mal andaria o mestre se, em vez de um homem bem vertebrado, bem senhor de si, tivesse nos seus propósitos formar um homem  de rebanho. Abrenúncio!
Paradoxalmente, a autoridade do professor tem que harmonizar-se com a liberdade do aluno. Que espécie de autoridade? Que espécie de liberdade? A autoridade será doce e firme e tal que, nunca, por nunca!, diminua a personalidade do aluno, antes ajudará a formá-la. A liberdade será tal que, posta em prática, não desande em licença, não redunde numa despromoção da personalidade, e a mim me quer parecer quer haverá sempre minimização da personalidade, desde que ao aluno se permita (ou ele se permita a si próprio) a sujeição da razão às tendências inferiores. A personalidade é uma construção de todos os dias. É um triunfo da cultura sobre a natura.
O rio segue na linha das menores resistências, e por isso mesmo é que ele é torto. Mas é seguindo pela linha torta que ele vai direito (=directo) ao mar.
O homem que segue na linha das menores resistências - aquele que se deixa ir atrás dos seus pendores naturais, sem lhes contrapor um programa de superação de si próprio, construindo-se dia a dia - é também à maneira do rio, um homem torto. Com uma diferença, todavia, e essa profunda: é que o rio torto, abre caminho para o mar, através da sua tortuosidade, o homem torto, abre caminho para a... morte física e espiritual, deixando-se ir segundo a caprichosa lei dos seus naturais pendores.
Que o rio seja apenas natura, não vai nisso mal nenhum. O homem, porém, não pode ser só natura: há-de ser, fundamentalmente, cultura.
O homem, se quiser formar-se como carácter, não pode deixar a natura à solta, tem que lhe sobrepor a cultura. E cultura, no caso presente, é auto-domínio, auto-resistência, auto-mortificação, perante as solicitações naturais que o dominam como homem. O violinista "magoa" as cordas para que ele toque melhor. O escultor "magoa" o mármore para que ele possa desentranhar-se na bela estátua. O homem, por sua vez, precisa de se magoar pela disciplina, para se promover de humanus a humanior. O carácter é uma conquista pessoal de todos os dias.

                                                                                                                                (continua)

O garimpeiro que encontrou  este diamante,

Rui Abrunhosa,

agradece à Assistente Fernanda Santiago a sua disponibilidade para compor e editar este trabalho.
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