LAH1954

um blog de antigos alunos do Liceu de Alexandre Herculano, do Porto

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

PENSAR ESCREVENDO, ESCREVER PENSANDO ~ 2ª parte.






Uma página por Cruz Malpique


(Continuação)





O BINÓMIO MESTRE -DISCÍPULO
Duas Súplicas e Um Juramento




Cruz Malpique - Luanda - 1937 (a)

9 - Fazei que eu descubra e respeite a vocação dos meus alunos (1).
Um dos maiores suplícios que ao homem pode caber é ter de se entregar a um trabalho que esteja em desacordo com a sua vocação. Esse desacordo não representa, apenas, em muitos casos, um prejuízo de ordem económica, representa, outrossim, um vazio de alma, provado como está que o trabalho realizado com gosto ajuda o homem as realizar-se espiritualmente.
Vocação é chamada de dentro e a melhor maneira de nos realizarmos por fora, é acudirmos à chamada de dentro. O signo do nosso destino está, muitas vezes, na repercussão por nós dada a essa voz interior.
Vocação e, portanto, profissão, que é aqui que ela culmina. Profissão todos a devemos ter, e o mais próximo possível da vocação. A profissão é, de uma só vez, dever para connosco (o dever de nos bastarmos a nós próprios - ou de "levantarmos o nosso próprio peso", como disse alguém), e dever para com a sociedade, na qual devemos ser "pedra viva", em vez de "pedra morta".

10 - Fazei que a minha escola não seja caserna, mas que não seja também uma casa libertária, onde tudo me fosse permitido. Sinto que não posso deixar à solta a minha natureza, de lhe criar hábitos construtivos, de dizer não a umas quantas das suas inferiores solicitações, de dizer sim a uns quantos inferiores ascetismos que me assegurem a vitória de mim sobre mim mesmo, provado com está que mais vence quem mais se vence.
Um homem diz-se disciplinado, na medida em que, dia-a-dia, se vai construindo a si próprio, passando de homem a mais homem, e, para isso, congemina os meios e prontamente os põe em prática, transpondo obstáculos, fugindo a distracções, vencendo-se a si mesmo, nas suas tendências inferiores. O homem disciplinado gosta de comandar os outros para a realização de uma obra de utilidade social. Mas a quem ele, sobretudo, gosta de comandar é a si próprio, que a disciplina, bem entendida, como a caridade, por nós mesmos deve começar. 

11 - Fazei que a escola não seja fábrica de exames, mas viveiro onde se preparem cidadãos prestantes.
Durante muitos séculos a escola foi essencialmente memorialista, e julgava-se, dos que frequentavam, sobretudo pelas noções decoradas. Decoradas e... decorativas!
Hoje, essa concepção está ultrapassada. Julgamos os indivíduos, muito menos pelo que decoram do que principalmente pelo que fazem em função da capacidade de pensarem por conta própria. O bom cidadão não é o que melhor cumpre na chinesice dos exames, mas aquele que com maior eficiência social actua nas relações humanas. 

12 - Inspirai os altos comandos a que reduzam os programas escolares às ideias fundamentais e funcionais, de maneira a que os meus discípulos não se percam no mundo da quantidade e do simples palavreado, fora da observação directa e da experimentação flagrante.
Certos programas congestionados e, para mais, ministrados na base do puro memorialismo psitacista, são da qualidade de idiotizar e cretinizar ainda os espíritos mais lépidos. Há aí, com efeito, certa espécie de ensino mais da qualidade de fechar do que de abrir inteligências. Ainda não perderam inteiramente a sua actualidade as palavras de Rabelais, relativas a Gargântua:
«Vraimente [Gargantua] éttudiait très bien et y mettait tout son temps, tourefois rien ne profitait. Et qui pis est, en devenait fou, niais, tout nerveux et rassoté». Mais lhe valera «nerien apprendre que tels livres, sous tels précepteurs, apprendre. Car leus savoir n`est que besterie, que moufles abâtardissant les bons et nobles, espirits, et corrompant toute fleur de jeunesse».
Montainge dizia de toda a juventude francesa o que Rabelais dizia do seu herói. Os meninos estavam muito espertinhos na escola, sim senhores, mas saíam de lá brutinhos que nem uma porta, por obra e... desgraça de um ensino todo memorialista, psitacista e outros -istas, destes ou parecidos géneros. A pedagogia de então era a arte de embrutecer. Que o diga Montainge:
«Que mon écolier eut passé le temps à jour à la paume: au mouns le corps en serait plus allègre. Voyez-le revenir de là, , après quinze ou seize ans employés: il n`est rien si mal propre à metre en besogne. Tout ce que vous y reconnaissez devantage, c`est que son latins et son grec l`ont rendu plus sot et plus preésomptueux qu`il n`était sorti de la maison: Il en devait rapporter l`âme pleine, il ne l`en rapporte que bouffie, et l`a seulement enflée au lieu de la grossir».
Ela assim, vai para cinco séculos. Não se vê que nestes nossos tempos de agora as coisas se tenham modificado muito, por quanto os processos de ensino continuam ainda a ter muito de rotineiros. A rotina pedagógica pesa toneladas sobre as nossas escolas.

13 - Livrai-me de encaminhar, precocemente, os meus discípulos para a especialização estrita. que eles ganhem, quanto possível cultura geral, deixada e especialização para quando frequentarem a Universidade. Aliás, com a cultura geral. Como dizia Vítor Duruy, «il faut être universel au profit de la spécialité».
Em desfavor da especialização estrita se pronunciam uns quantos. Dizem eles que as ciências estão de tal maneira ligadas, formando cadeia lógica, que mais fácil é aprendê-las em conjunto do que aprender uma só desarticulada do todo sistemático ao qual pertence. A parte só ganha significado inteligível, quando integrada na unidade onde desempenha função específica. As partes e o todo, este e as partes, auxiliam-se mutuamente na sua inteligibilidade. Textualmente escreveu Pascal:
«Je tiens impossible connaître les parties sans connaître le tout, non plus que connaître le tout sans connaître particulièrement les parties».
Nada melhor que a especialização, com a condição, porém de se alicerçar numa cultura que se processe no sentido da universalidade. A especialização é a visão, em profundidade, de um sector restrito, mas, porque este só ganha significado inteligente quando articulado ao contexto cósmico, importa que nunca se percam de vista as perspectivas de conjunto, a larga mundividência.

14 - Inspirai-me para que eu crie nos meus discípulos o gosto da cultura, mas não o da erudição.
O homem culto toma atitude muito diferente da do homem erudito, porque, com efeito, enquanto o culto é, acima de tudo, um espírito progressivo, diligenciando ir sempre além do que já foi investigado, abrindo novas perspectivas, o erudito é, fundamentalmente, o conservador, o registador do averiguado, o repetidor do alheio, o medroso da novidade.
O homem intelectualmente culto não é o que domina muitas ideias alheias, e que só para elas vive. Não. O homem intelectualmente culto, sem passar sumária esponja sobre o saber investigado por outrem, timbra, sobretudo, em investigar de conta própria; é, fundamentalmente, o que a palavra inteligência está insinuando: leitura no âmago das coisas ou, acima de tudo leitura das relações que interligam as coisas, as ideias, os factos, os fenómenos, os acontecimentos. Relacionar o novo com o já adquirido, assimilar o inédito ao antigo, sempre no estilo da teste bien fait, em desfavor da cabeça simplesmente atafulhada, ou da teste trop pleine, eis o que o homem inteligentemente educado faz, e de que o homem memorialista, ou eruditão, é incapaz.

*   

E na sequência desta Súplica é aqui oportuníssimo o

Juramento do Mestre 

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(1) É preciso , todavia, dizer que há aí quem não aceite a existência de vocações precoces (caso de Pascal, para as matemáticas), e se ria do monocefalismo: marcados uns para a literatura, outros para as ciências, uns para o pensamento, outros para a acção... São esses tais que dizem haver meninos que se julgam marcados para a poesia e acabam engenheiros. Claude Bernard, por exemplo, julgava-se, primeiro, talhado para o teatro, e chegou a escrever peças, que lhe foram rejeitadas. Foi então, que se voltou para a investigação científica, no sector da fisiologia, e, aí, foi astro de extraordinário fulgor.
Portanto, concluem esses tais, a vocação faz-se. Faz-se, não nasce feita. Os pequeninos Padrerewskis ou Mozarts são mais raros que as esmeraldas azuis.
Deixamos o caso à ponderação do leitor.


O Copista,
Rui Abrunhosa                                                                                                                          (continua)


(a) Apesar de esforços não conseguimos identificar autor, orígem e local ou locais de publicação.
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2 Comentários:

Blogger António Moreira disse...

Na primeira parte não gostei de ler em azul muito lindo as palavras «cruz malpique» em letras minúsculas mas, ao menos houve o mesmo critério ao dar igual tratamento à palavra «garimpeiro». Ao ler hoje a 2ª parte já gostei mais de ver no mesmo azul aquelas palavras em maiúsculas e mantendo também o mesmo critério para o «Copista».
Fico agradecido por o garimpeiro Copista estar a deliciar-nos com a publicação, ainda por cima a prestações se juros, desta conferência proferida pelo «Nosso» Dr. Cruz Malpique» que, para a levar hoje aos Fenianos, se calhar não precisava de fazer alterações para continuar válida.
Abraço do Moreira

19 de janeiro de 2017 às 21:14:00 GMT  
Blogger LAH1954 disse...

Esculpa, esculpa, esculpa... pensei que puxava mais ao fino...
Já troquei as pequenas pelas grandes... salvo seja...
rui abrunhosa... só para chatear vou com as pequenas...

5 de fevereiro de 2017 às 20:18:00 GMT  

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