LAH1954

um blog de antigos alunos do Liceu de Alexandre Herculano, do Porto

quarta-feira, 15 de março de 2017

UMA PÁGINA PELO DR. CRUZ MALPIQUE - VI




CHÁVENAS DE CAFÉ QUASE AMARGO (1)

I







PROPRIEDADE DAS IDEIAS


Alexandre Herculano, num momento que se nos afigura de extrema felicidade escreveu isto, a respeito da propriedade das ideias: 
«Um marceneiro inventou uma cadeira elegante e cómoda; deu depois existência e vulto à sua concepção, fabricando uma dúzia ou um cento de cadeiras, em que essa concepção se manifestou, e vendeu-as com um lucro mais ou menos avultado. Os que crêem na propriedade das ideias devem invocar o direito de propriedade para a concepção do marceneiro, porque o marceneiro é tão cidadão como o escritor: devem declarar contrafactor outro qualquer indivíduo da mesma profissão que, vendo a procura, no mercado, daquela forma de móveis, os imitou sem licença do inventor, sem lhe pagar o preço da ideia, o preço da sua propriedade intelectual» (Opúsculos, tomo II, pags. 55-148).
Eu gostaria de presenciar a reacção de Herculano, se um atrevido se lembrasse de lhe contrafazer qualquer dos seus livros - desde o Eurico, até à História de Portugal... Como é que um homem de carácter, a seriedade em pessoa (que tal foi Herculano), poderia tolerar, nos outros, o que ele, em si, não toleraria? Pode o leitor conceber Alexandre Herculano no papel de contrafactor das ideias de qualquer escritor ou pensador? A probidade moral e intelectual era, em Herculano, a mais justa das obsessões. O suum cuique  era seu programa. Nunca, por forma nenhuma, ele se apropriaria do alheio, mesmo disfarçando-o. Isso seria uma fraude - e fraude nenhuma teria a aprovação do honestíssimo autor da História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal.
Voltemos à pergunta: Como é que ele poderia deixar passar, nos outros, um delito de que ele seria incapaz? Como?
Em nossa opinião, o próprio marceneiro se criou um novo tipo de móvel, e se registou a patente de invenção, tem direito à propriedade da sua ideia. É assim com a invenção do móvel, e assim é com as demais invenções. As invenções não surgem por geração espontânea. Exigem génio natural, esforço intelectual concentrado, por vezes longos anos de trabalho. E sendo assim, lícito é que chame sua à ideia que incubou no seu espírito, e dela extraia os lucros respectivos. Iremos dar o Prémio Nobel àquele que fez uma grande descoberta, ou ao seu contrafactor?


VOCAÇÃO

Não peçam, ao cordeiro a ferocidade do lobo,  ao tigre a mansidão da pomba, à águia os voos rasteiros da galinha, ao oceano o murmurar do regato, ao sol o brilho da vela de estearina, à Primavera as tristezas do Inverno, ao rouxinol arrojos de leão ... Seria pedir o impossível, um impossível quase igual ao de amarrarmos o vento com uma corda ou de nos elevarmos às alturas, puxando pelos atacadores dos nossos próprios sapatos.
Seguir a vocação - uma vocação que não nos diminua a dignidade - eis, pois, a maneira de provarmos que somos alguém, vindos de algures. Fora da nossa específica vocação, supuramos tédio por todos os poros. Somos infelizes e concorremos para a infelicidade dos outros.
Se, neste mundo, o número dos ineptos não têm conta, isso se deve à circunstância de infinitos homens não se encontrarem no lugar em que a natureza os desejava, e para o qual os criou.
Se não há génios que para tudo sejam aptos, certo é também que não há aí indivíduo que seja inteiramente destituído de aptidões para isto ou para aquilo.
Se tantos são os homens falhados, é porque a educação se tem orientado menos - muito menos - pelas vocações do que pelo puro capricho de a todos medir pela mesma bitola, considerando que somos puras tabulae rasas, nas quais se pode escrever tudo que nos aprouver.
Metemos os alunos nas escolas, como se fossem todos iguais, sem lhes sondarmos as específicas tendências, as pessoalíssimas aptidões, os dons inconfundíveis.  Tratamos igualmente, uniformemente, educandos muito desiguais. E, depois, estranhamos e lamentamos que o rendimento escolar seja precário. Pois pudera! Águias não se querem em capoeiras. E patos marrecos não podem vir a ser águias.

MEDICINA PSICO-SOMÁTICA


Os médicos continuam a ter muito de veterinários, isto é, a ver, nos doentes, essencialmente corpos, fazendo de conta que as almas não existem. E daí fazerem apenas meias-curas. Mas, para irem às almas importa que adquiram cultura filosófica, psicológica, humanística, que ainda, em geral, não possuem, e que lhes possa servir de complemento à cultura apertadamente fisiológica recebida nas Faculdades.
Parece, todavia, que estamos longe desse alvo, porque, ainda agora, na classe médica, existe o preconceito de que as literaturas (e nesta palavra englobam a cultura filosófica, psicológica, humanística) não adiantam um milímetro à terapêutica.
Perdoai-lhes, Senhor, porque não sabem o que dizem! O que a atitude da maioria dos médicos revela (circunscrevendo a sua cultura apenas ao aspecto somático da medicina) é preguiça mental e (durus est hic sermo) desamor dos seus doentes.
O médico, de facto, devia ser psicólogo, escutar, interrogar e aconselhar o seu doente. As palavras do doente que se confessa ao seu médico, se forem interpretadas com argúcia psicológica, serão, por si próprias, seguros indícios e até sintomas da doença a diagnosticar.
Quando é que todos os médicos terão a cultura psicanalítica necessária, para saberem interpretar terapeuticamente os relatos, os sonhos, os lapsos, as imagens, os paralogismos e os sofismas dos seus doentes?
Têm ainda muito caminho a percorrer. Dá trabalho percorrê-lo. Mas é indispensável que o percorram. 

O  copista,
Rui Abrunhosa

(1) - Bebi estas três chávenas de café, (oferecidas de mão estendida pelo seu livro CHAVENAS DE CAFÉ QUASE AMARGO - 1ªSérie, por si próprio editado, em 1957, e tendo por depositária a Editora Educação Nacional no nº 125 da rua do Almada no Porto. Trata-se de coletânea de cerca de 300 pequenos escritos embrulhando cada um deles pensamento de grande profundidade, brotado em cristalinos repuxos, nas inesgotáveis  fontes de cultura , do conhecimento do Homem, dos homens e dos homensecositos .
Acrescento a propósito, apesar de o ser de conhecimento urbi et orbi, que estes repuxos de elegância também foram sendo colocados em numerosas publicações hebdomadárias, dispersas por todo o país, e de que a última , se não erro , por anos , foi a de S. João da Madeira.

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