PEDAGOGO DE RARA ORIGINALIDADE
DR. FILINTO
ELÍSIO VIEIRA DA COSTA
ORIGINALÍSSIMO PEDAGOGO
Por Trave Mestra - de Mestre - o Bom Humor. Por Pedra Angular o Rigor Científico. Por Bússula, a Análise Crítica. E está feito o retrato do Dr. Filinto... ai!... esqueci um cigarro de tabaco de onça, enrolado à mão, já fartamente usado e, de cansado, esquecido no canto do lábio, com molhada nicotina a marinhar pela mortalha acima, ou abaixo. ..
Então a Trave : Finíssimo bom humor , dizendo aqui e ali coisas muito fortes, mas sempre em termos da mais elegante fineza e elegância.
Em suas aulas, usava as gargalhadas como arma de arremesso de conhecimento novo ou de normas para mudanças de comportamento.
Ouviam-se cá fora.
Quem está na sala? Perguntava no corredor o passante. O Filinto, respondia o coquiper do passante.
Época de infecções respiratórias, por meados de Fevereiro. Fez agora cerca de 68 anos. O Professor titular da disciplina, o Dr. Balacó , adoecera com uma dessas, de atirar fora os bofes com uma tosse que já não há. Tudo acaba! Até a tosse.
Recentemente entrara em vigor o esquema das "aulas de substituição". Trinta alunos sem aula de Ciências Naturais. A tal tosse já percorrera os corredores em pressurosas difusões dos noticiários de intervalo («lúcido» - Pessoa).
Os pele vermelhas exultavam com um feriadégues. Porém, para substituição, surge o Dr. Filinto que começou por se inteirar das pernas molhadas pela grossa chuva. Chamou o Sr. Abrunhosa e pediu-lhe para buscar molhos de jornais, instruindo a maralha sobre como fazer uma falsa calça seca e quente, com os jornais, dentro da calça molhada.
De seguida, começam perguntas. Bem feitas. Para espevitar sonolentas circunvoluções cerebrais. Instala-se a curiosidade. A propósito e, para relaxar, engata, por associação de ideias, a história de quando teve de defrontar um lutador de luta livre, dos do Parque das Camélias.
Descreve o lutador, mas não aprofunda a causa da acontecência. Dr. Filinto era um finguelinhas de metro e sessenta, quando muito, e meia dúzia de quilos...
- «Sim, porque nessa época eu não era como sou hoje, eu tinha um punho como a coxa de uma mulher gorda! Quando tirei o casaco e levantei as mangas da camisa, o lutador da luta livre pirou-se logo pelas frinchas da porta». Gargalhadas. Muitas e irreprimíveis gargalhadas...
Bom humor. Ganhou logo a turma de 30 bicos com quem nunca tinha trabalhado.
Contava meu Irmão - dele foi aluno dois ou três anos - que quando alguém dizia uma calinada, logo o Dr. Filinto se insurgia: «... vai prá pata que te pôs!...»....gargalhadas, nomeadamente do "posto pela pata". Consequência?, nunca mais na vida o "posto pela pata e tuti quanti" se iriam esquecer do tópico, do conceito, da substância, dos significados.
E então porquê certas mulheres têm a coxa como a coxa de uma mulher gorda? E lá vai um magnético descrever, com a ciência do tempo, de arestas um pouco limadas, para não arranhar, a condição que levava uma mulher a ter uma coxa como a coxa de uma mulher gorda. Metia tiróide, um pedaço dos ovários e bastante de pâncreas, com uns "póses" de hipófise e, depois de tudo bem cozinhado, o surgimento, entre mais, de uma diabetes melitus.
Às gargalhadas pegara ideias fulcrais sobre o metabolismo da mulher que tem uma coxa como a coxa de uma mulher gorda! éramos de quinze ou dezasseis anos... e já nos deixava ficar a saber o porquê das coxas como as coxas duma mulher gorda!
Ahh! esquecia: a coxa como a coxa de uma mulher gorda não vinha no Livro Único, mas a turma levitou, com a saborosa delícia do novo. E já agora, uma notícula: o livro único trazia o licopódio, com direito a desenho e tudo...
Deve o escriba assinalar que esta foi a única ocasião em que co-habitou em sala de aula com o Dr. Filinto e nunca fora dela. Não pode por isso estender-se muito sobre um histórico do Dr. Filinto. Só de ouvir dizer ou de ter perguntado ... mas, embora assim, passemos ao segundo traço do "retrato do Filinto".
Pedra angular da sua pedagogia, o rigor científico. Mais do que obrigar o aluno a ter(?) conhecimento novo, semeava, cultivava no aluno, postura do rigor na vida e, por consequência, na vivência da ciência, na perscrutação de significados ante o facto novo, (ou velho...). Inculcava o aprender a aprender, o aprender a ler a natureza, o aprender a cogitar, quiçá soluções ou propostas de soluções outras, para um certo já visto e arrecadado. Contava do Galileu e de outras acontecências no mundo da Ciência, demonstrativas das respectivas centragens ou descentragens no rigor científico. Ora aí está: embriões de epistemologia, para mais tarde cada qual desenvolver, ajustadamente, no e ao seu campo de vida. (by the way, ou jágora: a meia dúzia de dias para se escolher quem seja confiável para construir um futuro decente para a Europa e, por arrastamento, para muita gente fora dela, cada bico que bota papel na urna foi a tempo e horas apetrechado com ferramentas da epistemologia para o fazer? é com visitinhas, parvas, corridas, a correr, a beijocar, a olhar pró lado, visitinhas dizia, ou à fabriqueta do gajo do partido ou à banca da Peixeira e à banca da Mulher das peugas e cuécas, com copos e bolinhos de bacalhau, a fingir, e, pelo meio, tudo misturado e bem remexido, com música de Quim Barreiros, que se propõe o que haverá ou haveria de ser desfibrilado para se compreender o que lá está dentro, e, enfim, com conhecimento escolher?... não, não há proposta de material para desfibrilhar, compreender, e depois escolher. Só há grandes interesses de alguns, pequenos interessesinhos da maioria que bota papel e nenhum interesse por parte da grande maioria que não aparece. Não houve escola nem ontem nem hoje...não há papel... dos que andam aos papeis...a Pôva!)
Por fim a bússola na busca do norte. A busca pela análise crítica.
Anos quarenta, princípios de anos cinquenta. Imperava o Livro Único, que só de muito longe a longe era mudado, em geral para pior. Aí, Filinto, qual cisne - negro - poetando sobre a água tranquila de quem sabe muito calmamente o que faz e ao que vai, convidava um aluno para ler uma qualquer página do ex-ante livro. Pedia depois para repetir a leitura, de vagar, batendo bem as palavras e a pontuação. Ouvido assim o texto, com o espirito suspenso, de quem está mesmo à espera de que salte de repente a perdiz, porque vai saltar, não se tinham dúvidas, convidava então o Dr. Filinto, outro aluno, para uma outra colaboração (claro, os alunos tinham a noção de que estavam colaborando no desenvolver da aula).
A este segundo aluno Filinto pedia fizesse um esforço para "esfiar" o texto, por forma a ficarem separadas ou separados, ideias, temas, aspectos, conceitos, pronuncias, descritivos, significados, mensurações compatibilizações, enfim pedacinho a pedacinho os pedacinhos com que no texto se construía a
peça, suposta pelo autor como válida. Em seguida convidava a turma a levantar o braço para pedir licença para opinar, sobre os pedacinhos, pedacinho por pedacinho, sobre associações alternativas dos pedacinhos, quiçá não alinhadas com o alinhamento que o autor produzira, para concordar com o autor, ou para retirar e porquê conclusões em alternativa, enfim! Depois de alguma agitação da turma, o Dr. Filinto começava também a meter "bedelho", sei lá, só para tirar uma vírgula ou meter "apesar de", por exemplo, e para começar.
Com mão de Mestre começavam a surdir iluminações e, rapidamente, a nova realidade: o texto no livro único - descobria-se - era afinal, um desconchavo, um nada, ou, pior, uma gargalhada. E aqui sim! o Dr. Filinto dava meia volta e, em bicos de sabrinas pretas, volteando o capote amarelo e vermelho dava a faena por acabada. Estava feita a análise crítica daquela peça. O aluno entrou às escuras e saiu iluminado. O livro único ?... uma merda, nem em português estava escrito. O aluno tinha feito descobertas até às "últimas consequências". No crepitar da chispa que salta, tinha percebido que para saber Ciências Naturais e, mais difícil ainda, saber delas dizer, ser da «União Nacional», não adiantava puto. Nem para aquilo nem para nada... a não ser para se fazerem chefes de quina, de castelo, e de bandeira, e, oportunamente, amesendar tacho sem trabalhar... mudando os nomes aos paliá vódia... afinal como agora, né'... ( para não correr o risco de ofender alguém, ponho a coisa em grego antigo) .
Para resumir: Filinto Elísio, se me permitem parafrasear Eça de Queiroz, (quando conclamava que «não há nada que resista a que lhe passeiem duas gargalhadas à volta»), levava seus alunos a passear duas gargalhadas à volta da "sebenta" que tinha o pomposo nome de "Livro Único". Empapando a aula de bom humor, convidava os seus alunos à analise crítica, a fortalecerem sempre, ao longo da vida, a capacidade de análise crítica, sem perderem nunca o sentido do bom humor, porém não ofensivo, e tudo com extremo rigor científico.
Tudo isto caía no goto dos seus alunos. Ficavam sempre à espera - como depois dos concertos, no caso depois de terminadas as aulas do dia - de mais e mais um encore.
E assim se compreende essa coisa tão extraordinária que foi "a Núvem"...
A Núvem era uma Coisa Forma, ou uma Forma Coisa, globosa, de diametro progressivamente maior , a ponto de acabar por saltar fora do passeio, com risco da própria vida, pois as ruas de António Carneiro e de Barros Lima, á época, tinham transito automovel e a segunda de Electricos também, o 15 e o 15e, nos dois sentidos. A forma globosa era feita de corpos jóvens, com orelhas esticadas, para se poder não perder pitada do que o Dr. Filinto ia dizendo. Sempre a curiosidade pelo novo. Sempre a capacidade de magnetismo e de sedução. Sempre a alegria de sentir que até na rua ia enriquecendo jóvens, o jóvem espírito de jóvens .
A Nuvem começava a formar-se na Avenida Camilo, subia António Carneiro e Barros Lima e dispersava à porta da residência do Dr. Filinto, na porção já plana de Barros Lima, numa moradia convizinha das do Prof. Noémio Curado e do Dr. Luís Afonso, formando as três um conjunto interessante porque muito idênticas umas às outras, até na azulejaria que as revestia. Aínda lá estão e já vinham dos princípios do sec. XX. Num trajecto para 5 ou 7 minutos a nuvem ia-se detendo agora e logo durante muito mais de uma hora.
Que de aculturação !!!
Mais tarde o Dr. Filinto comprou um Morris pequerrucho, então muito popular. Não demorou - táva-se mesmo a ver, né? - que o esbarrasse. Entretanto o Morris acabou com a núvem na rua, mas ficou sempre, na época de exames de Julho, debaixo das frondosas tílias do "recreio do meio".
Dr. Filinto, originalissimo pedagogo, de provecta idade, sempre de prisca de mortalha e recoberto de jóvens, incansaveis estes na curiosidade e no prazer de o ouvirem.
Que de aculturação !!!...
Rui Abrunhosa
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