LAH1954

um blog de antigos alunos do Liceu de Alexandre Herculano, do Porto

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

HORA DE LUTO.ENCERROU HOJE O NOSSO LICEV



HORA DE LUTO

O Director da Escola Alexandre Herculano determinou-lhe  hoje o encerramento.


Chove nas salas de aula e outros espaços, com risco de desabamentos.



Quem se responsabiliza, ou responsabilizou, ao longo de anos, por isto? 


PARA ONDE FOI O NOSSO DINHEIRO DOS NOSSOS IMPOSTOS?


FILHOS DE UMA TRIPA 

 CLEPTOCRATA!...

Rui Abrunhosa (seguindo a «norma SVS - Sarcasmo Vagamente Sacana - afinal a única arma que resta em Portugal», como diz o Comendador Marques de Correia no "Expresso" de 2 de Fevereiro de 2008. Verdade ou mentira?...précura o Subscritor...
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PENSAR ESCREVENDO, ESCREVER PENSANDO - 4ª e última parte..




Uma Página por Cruz Malpique


(Continuação)


O BINÓMIO MESTRE-DISCÍPULO 
DUAS SÚPLICAS E UM JURAMENTO




Dr. Cruz Malpique - (1)



SÚPLICA  ( QUASE ENFÁTICA ) DO  DISCÍPULO  (JÁ ESPIGADOTE), DIRIGIDA ÀS MUSAS DA PEDAGOGIA

1 - Dai-me mestres que de mim façam uma personalidade, em vez de uma alforreca; uma inteligência original, em vez de um citador, recitador e, muito menos um ... trescitador; uma vontade bem vertebrada, estilo-eu-quero, em vez de estilo-eu-bem-queria; uma alma confiante em si própria, em vez de uma alma de cacau, molezinha, ao sabor de todas as vagas, incapaz de se ter firme na corrente.

2 - Dai.-me uma escola que me eduque à altura de eu, feito homem, poder contribuir para o advento de uma mundo melhor. Evitai que eu, na escola, seja formado como homem de rebanho, sem originalidade nenhuma, sem personalidade própria, sem risca específica, sem que tenham olhado à minha vocação, que, aproveitada e cultivada, me permitirá ser útil a mim mesmo e à sociedade a que pertenço.

3 - Dai-me, outrossim, uma escola que me promova de homem a mais homem; uma escola que me desentranhe de todos os meus recursos; que me catalise, de maneira positiva, todas as minhas virtualidades construtivas, todas as minhas aptidões adormecidas; que, do calhau em bruto que eu sou, faça o diamante lapidado capaz de inéditos fulgores; que em mim, espécie de tabula rasa, inscreva um ideal propulsor, um excelsior! com poder bastante para subir as ladeiras mais íngremes.

4 - Dai-me mestres que me incitem a preferir o erro original (e por mim emendado com persistência e inteligência) à verdade preguiçosamente copiada. Sei, de experiência própria, que o erro original - e por mim emendado em reiteradas tentativas - é criador de auto-confiança, ao passo que a verdade simplesmente copiada faz que eu fiquem, para todo o sempre, a marcar passo no mesmo lugar. Não me ajuda a crescer intelectualmente - antes diminui e me cria o complexo de que nasci vacinado contra a possibilidade de criar alguma coisa de original. 
São maus mestres os que nos poupam esforço. Está bem que apeteçamos aquilo que devemos aprender - mas que não nos dêem a papinha já mastigada. Latim ou Grego sem lágrimas - e portanto com alegria - bem está. Mas sem esforço é impossível. Só aprendemos indelevelmente aquilo em que pusermos o trabalho do aprofundamento. Aquilo que «ganhamos» pelo esforço alheio - alheio e não nosso - fica-nos sempre curto nas mangas. Mal andam os mestres que se apressam a tirar-nos as dificuldades, a evitar-nos os tacteios, os erros. Julgando eles, ingenuamente, que estão fazendo bem aos seus discípulos,, antes os prejudicam, e profundamente. Experiência, em boa verdade, só a nossa, pessoalíssima, conta. Aprender por procuração é sempre um aprender periférico. Pedagogia só uma conta: a do esforço voluntário. Contra-indicada a pedagogia de leite e mel, na qual tudo nos é dado generosamente.
Suscitar o interesse é despertar, automaticamente, o gosto do esforço. Onde interesse não existe, dificilmente poderá surgir o gosto do esforço. Pedir esforço ao aluno, em actividade cujo alcance ele não entende e não sente (e que por isso não quer), é perder tempo. Crie-se, pois, e em primeiro lugar, o interesse, e seguir-se-á, daí que logo o desejo do esforço crepitará. Não se renega o esforço, desde que ele seja praticado com gosto, bem de dentro.
O interesse salta aos olhos do aluno, na medida em que ele se persuadir da funcionalidade e da utilidade do estudo, logo, ou num futuro próximo. Sem o isco da utilidade e da funcionalidade postos no anzol do estudo, o peixe-aluni, dificilmente «pica»... Estudamos a medicina não pela medicina, mas pela saúde e por aquilo que com o seu exercício possamos ganhar. Os alunos não são anjos descido do céu à terra. São criaturas humanas. , para os levar, forçoso é que eles tenham insofismavelmente interesse pelas observações e experiências a fazer, pelos textos a ler e assimilar, pelas técnicas a aprender, pelas fórmulas a memorizar, pelos erros a emendar, pelas específicas originalidades a afirmar, pelas áfricas onde meter as suas lanças.
É fundamental apelar para o amor próprio do educando, para o seu desejo de vencer, de criar obra, de marcar personalidade e, nesse clima, não há esforço (e, portanto, trabalho) que ele não queira.
Disse José de Maistre que «não há métodos fáceis para aprender coisas difíceis».
Há pelo menos, uns que são mais fáceis que outros para aprender coisas difíceis, e não se vê que exista vantagem em o mestre escolher precisamente os métodos mais difíceis para ensinar as coisas difíceis. Até onde se puder encontrar um caminho linear, não se procurem caminhos sinuosos, torcidos e labirínticos.
A mania de dificultar a aprendizagem parece ter siso, outrora, um timbre de valor moral dessa mesma educação. Quanto mais dificilmente se aprendessem as coisas, tanto melhor. E, portanto, condenadas estavam todas as metodologias que facilitassem. Parece inacreditável, pois não? Então leia-se o depoimento de Madame de Stael (de l`Allemagne, I, 17):
«L`´education faite en s`amusant disperse la pensée; la peine en tout genre est un des grands secrets de la nature... Vous enseignez avec des tableaux, avec des cartes, une quantité de choses à votre enfant; mais vous ne lui apprenez pas à l`apprendre». 
Quer dizer que, se esta senhora vivesse hoje, condenaria sumariamente todos os processos audiovisuais, com o pretexto de que os meninos, aprendendo, sem esforço de maior, se estavam divertindo, e dispersando o pensamento...
Rádio, televisão, cinema..., tudo isso ela condenaria, porque tudo isso, como metodologia do ensino, é facilita.
Estúpido, pois não?

5 - Ponde, na minha escola, mestres, que de mim não queiram fazer discípulos servis, copiando-os a par e passo, imitando-os como paradigmas inultrapassáveis. Os mestres de que eu preciso são aqueles que, nos seus alunos, pretendem despertar uma personalidade com a sua originalidade própria, de modo a beberem pelo seu púcaro pessoal, ainda que pequeno seja.
A muita consideração que nos mereça a personalidade da criança, não levará, em todo o caso, a escola a fazer de conta que o aluno é tudo, e o mestre é nada. Se aos alunos fosse deixado (como já se tem sugerido) organizar inteiramente os seus programas de estudos, é provável que eles ficassem satisfeitos de momento. Mas, por falta de perspectiva sobre a vida social em que virão a articular-se, quando homens feitos, não seria caso de estarem a prejudicar-se, como futuros inadaptados?
A educação deverá ser tal que respeite os gostos construtivos do aluno, mas que, outrossim, os prepare para se integrarem eficientemente na vida social como futuros cidadãos.

6 - Preparai mestres que me habituem a observar directamente, a experimentar em flagrante, a expor o resultado das minhas observações e experiências, das minhas leituras, dos meus passeios, das minhas excursões, dos meus ideais, dos meus problemas. Aprende-se a falar falando, a escrever escrevendo, e eu pressinto que, uma vez metido na vida social, hei-de precisar e escrever, falar descontraidamente, escrever com elegância e rigor.
Livrai-me de professores de português, que passam a sua actividade lectiva em cavalhadas gramaticais sobre textos de real beleza moral, estética ou social, de vivo conteúdo psicológico, esquecidos de que promoveram o acessório a essencial, e o essencial a simples acessório.
Dai-me mestres que me criem o gosto da linguagem clara, sem esfacelamentos da gramática. mas fazei que eles não me atormentem com a gramática dos compêndios. É persuasão minha que a gramática se deve aprender na leitura assídua dos grandes clássicos nacionais, especialmente nos contemporâneos, aqueles que falam e escrevem a língua que convém à diafaneidade das ideias. Mas assente que são esses escritores os paradigmas da expressão literária, que os meus mestres - desde o de português ao de química ou matemática - me não deixem praticar solecismos, porquanto os solecismos de gramática têm certo parentesco com os solecismos da vida. Bossuet, dirigindo-se ao Delfim, seu aluno, dizia-lhe numa carta: «Vous parlez maintennant contre les lois de la grammaire; alors vous mépriserez les préceptes de la raison... Maintemant vous placez mal les paroles; alors vous placerez mal les choses...»
Já está atraiçoando a razão e a vida quem atraiçoou a língua que mamou com o leite materno. Dai-me mestres que me não consintam esta traição.

7 -Inspirai quem de direito para que a minha escola se actualize com todos os processos de ensino audiovisuais, de tal maneira que, não me sendo possível eu ir, diariamente, ao mundo que preciso conhecer, ele me venha a domicílio, quase tão real e flagrante como é. Sinto-me logrado nas minhas aprendizagens, se tudo forem livros e só livros, com vagas estampas, sem movimento, sem vida, sem acção. Que a minha escola seja, quanto possível, uma réplica do planeta telúrico e social. Só dessa maneira terei a impressão quase flagrante de que sou mais do que homem da minha terra - cidadão do mundo.
Rádio, televisão, cinema, processos de comunicação hoje estandardizados, têm que fazer a sua entrada regular na escola, ao ponto de caírem na rotina, em vez de serem, como ainda agora se mostram, técnicas pedagógicas de excepção.
Não mais se justifica que eu aprenda Geografia no simples livro, uma vez que o mundo pode entrar na escola através da televisão, em condições de eu me tratar tu cá tu lá com esse mesmo mundo. E o que digo em relação à Geografia, é válido para todas as ciências da Natureza. Plantas, animais, com seus habitats  específicos, tudo isso se me pode tornar familiar, por obra e graça dos actuais processos de telecomunicações audiovisuais. Experiências de Química, de Física, de Biologia, dado que eu as não possa fazer directamente, podem ser feitas por peritos, com flagrante verdade, na minha presença, e o que, de véspera, para mim, era mistério, passará a ser uma verdade de clareza solar.

8 - Inspirai o Governo de maneira que este crie, em todas as escolas, bibliotecas actualizadas, com seus catálogos onomástico, didascálico e ideográfico, de maneira a que a consulta dos livros me seja fácil. Fazei que os directores das bibliotecas me ensinem a consultar um livro, a tomar as minhas notas, e a organizar com elas um ficheiro sistemático, de que eu possa tirar real proveito a toda a hora, menos para preguiçosamente citar autores do que, sobretudo, para, nas minhas fichas, ter matéria de meditação pessoal.

9 - Fazei que quem de direito crie, em todas as escolas, - e isso ao nível da mentalidade dos seus alunos -, uma discoteca, de maneira a que todos os alunos possam fazer a sua educação musical. Nesta nossa época, já não se justifica que a música seja privilégio de uma minoria. Desde a música de câmara e da música religiosa até à música popular, tudo aí anda hoje estandardizado, pelo que não se compreende que a escandalosa maioria das escolas não possua a sua discoteca.

10 - Levai os poderes constituídos a pôr termo à separação de sexos na vida escolar. O que me parece bem é a coeducação - em vez de educação em compartimentos estanques. Se rapazes e raparigas serão os homens e as mulheres de amanhã, em convívio de todos os dias, como se explica que a preparação para o convívio não se faça já na infância e na adolescência? Tudo haveria a lucrar com esse convívio, no qual os rapazes se habituariam a respeitar as raparigas, a ganhar os modos de cortesia, e as raparigas, por sua vez, perderiam os seus complexos de timidez, diante dos rapazes. Aprende-se a nadar nadando, aprender-se-á a conviver convivendo. Toda a educação deve ser eminentemente social, de intercomunicação, de diálogo, e não será pelos processos da separação de sexos que se fará essa educação. O ideal será que, chegados à vida extra-escolar, o convívio seja a natural sequência de um convívio que se vinha já fazendo, desde os bancos da escola. Sou, mesmo, de parecer que na escola exista sala de convívio de rapazes e raparigas. Vou mais longe: esse convívio, em vez de feito no vácuo, será baseado em todo um conjunto de temas expressamente preparados para colóquio, um colóquio que se traduza em consequências práticas, de real utilidade para a escola (exposições, organização de colecções, passeios de estudo, representações teatrais, secções de música ou de poesia, obras de beneficência) ou para a sociedade extra-escolar. Tudo, menos a ociosidade, provado como está que quem não tem trabalho, arranja... trabalhos!
Eu, como discípulo, sinto-me vexado por não depositarem, confiança em mim, atribuindo-me as pessoas crescidas, qualidades de papão indesejável diante das meninas... Justamente o contrário: serei tanto mais papão quanto mais me afastarem do convívio com as raparigas. A escola deve preparar para a vida - e esta não separa o que nasceu para se aproximar e para se unir.  Quem do homem quer fazer anjo, faz, afinal, a besta -. Um mestre desempoeirado o disse, e eu acredito: A vida não se processa no plano místico dos anjos descidos do céu à terra, mas sim, no plano das criaturas de carne e osso.

11 - Evitai que me seja dada uma escola lúgubre, ou em cujos intervalos de aula tudo seja tumulto arbitrário, loucas correrias, pretexto para tolas conversas, em que a obscenidade campeia. O que a sensibilidade me pede é uma música discreta, acalmante, que me convide ao recolhimento.
Fazei que, na minha escola, o canto coral seja uma realidade, e não apenas uma disciplina tolerada. Há uma poesia apenas para ser lida, ou recitada (e bom seria que os recitais de poesia fossem assíduos na minha escola), e outra para ser cantada. Inspirai os comandos do ensino, de maneira a que na minha escola se crie um clima poético e na criação desse clima pode a música desempenhar papel de capital importância.

12 - Fazei que os mestres não meçam todos os discípulos pela mesma bitola. Cada discípulo é um mundo, pelo que me parece essencial dever levar em consideração o que existe de específico em cada um. A pedagogia deve ter muito de diferencial, e portanto adaptada a cada caso especial. O aluno é um, mas as espécies são mil - pelo seu temperamento físico, pela sua curva psicológica nos aspectos afectivo, intelectual e volitivo. Se há alunos a quem é preciso refrear na sua natural curiosidade, outros há a quem é preciso esporear. Era precisamente Platão quem dizia, de dois dos seus alunos: Aristóteles precisa de freio, Xenócrates precisa de espora.
Que os mestres pensem na imensa variedade dos seus discípulos.
Cada idade humana tem as suas características espirituais, a sua específica mundividência, e, com isso, cria as suas prerrogativas próprias. Respeitá-las é dever do educador, que não pode proceder como se os educando fossem entidades abstractas.

13 - Dai-me mestre que de mim exijam persistência no esforço e escrúpulo na realização dos meus trabalhos. Não quero tolerância para as imperfeições que eu poderia muito bem evitar. Não quero complacência com a minha preguiça. Quero que me habituem ao rigor, ao acabado, e, portanto, à fuga do pouco mais ou menos. Guerra ao amadorismo, que pega em tudo e nada leva até ao fim.
Goethe quem (sic) escreveu, nos Anos de aprendizagem de Guilherme Meister : «Bem saber e bem fazer uma coisa, traz consigo um progresso muito maior do que fazer, a meias, uma centena delas».
E é progresso autêntico o que eu apeteço. Que, portanto, o mestre me crie o hábito do trabalho feito com escrúpulo. Antes o esforço lento e contínuo, do que andar sempre a saltar de uma tarefa para outra, sem acabar nenhuma. Acabar! Essa a linda divisa do Instituto Católico de Artes e Ofícios de Lille. A canção dos alunos desse Instituto reza assim:


Finir! one sait plus ce que mot renferme.
Nous bâclons un ouvrage et nous disons: «C`este bien.»
Nous négligeons le but et nous visons au terme:
Et pressé d`en finir, on ne finit plus rien.

Pourtant, l`oeuvre finie est seule impérissable;
Le long travail d`hier fait la gloire à venir.
L`ouvrage que l`on bâcle est bâti sur le sable;
L`ouvrage qu`on finit peut seul ne pas finir.

E neste jogo de palavras está também a minha filosofia, que eu desejo venha a ser a dos meus mestres. Só a obra que a gente acaba não... acaba. Só ela tira credenciais para a perenidade.
Dai-me, pois, mestres que em mim criem o gosto do perfeito.»
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(1) - No Restaurante Casa Branca, perto do termo de sua vida, o Dr. Cruz Malpique fez uma conferência. Para quem?, o copista não sabe. Sabe sim que alguém disparou o flash (quem?) em pleno curso da fala do conferencista. Ao copista foi facultada pelo nosso Januário essa fotografia, em papel, com  dimensões  um pouco menores do que os agora já clássicos 20x30. A imagem mostrava o Dr. Malpique, de pé, atrás do lugar na mesa que lhe coube para jantar e quase encostado a um lambrim, alto, de madeira, onde pousavam coisas muitas, pretensamente decorativas. Mais mostrava a imagem um grosso número de convivas, sentados onde jantaram, de pescoço e orelha esticados para melhor engatarem as carruagens de conhecimento que o Conferente ia oferecendo às respectivas reflexões. Ora...

... O Januário, enquanto um dos organizadores da homenagem que, com a nossa saudade, prestamos ao Dr. Malpique, há 3 ou 4 anos, (e já lá para traz foi partilhada neste blog), estava encarregado de providenciar a aquisição de um retrato fotográfico do  Dr Malpique, com a dimensão apropriada à colocação, destacada, na Sala Museu Dr. Cruz Malpique, onde, no Licev Alexandre Herculano, se guarda o que foi uma parte substancial da biblioteca do Mestre. Inimaginavelmente e imperdoavelmente, nada, nem ninguém, nessa sala, apresentava o Dr. Malpique aos visitantes que, por exemplo,  só já nasceram depois de ele nos deixar.
Quase com um eminente e iminente ataque de pânico, o Januário procura o copista  ( desta, e sou quem sabes...) perguntando se seria possível descolar o Dr. Malpique daquela fotografia , pô-la no microscópio, aumenta-la 100x10 vezes, arranjar-lhe um caixilho e prontus. Disse-lhe que sim, Suspendeu a hipersudurese de que vinha encharcado e abandonou a ideia do ataque de pânico. Estivemos, copista e Januário, a descolar e aumentar, a cara e a mão do Dr. Malpique, durante horas de comungado prazer.  E tudo se arranjou. Com muita calma. Deu no que deu e lá para cima se contempla, ouvindo-lhe a voz e sentindo-lhe a cadência do raciocínio.
O nosso blog está portantus hoje a reproduzir o retrato fotográfico do Dr. Malpique que, entre três obras de arte realizadas por pintores que lhe foram  amigos, encimam uma das estantes repletas de livros, folheados e refolheados, agora e logo, por Mão de e do Mestre.

O Copista
Rui Abrunhosa

A tempo: não percebo -sebo - porque raio aquele naco no texto da nota de rodapé aparece azul! e pior: porquê não consigo pintar-lhe as letras de preto... Copista de 3ª.
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sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

PENSAR ESCREVENDO ESCREVER PENSANDO - 3ª parte



Uma página por Cruz Malpique


(continuação)



O BINÓMIO MESTRE-DISCÍPULO
DUAS SÚPLICAS E UM JURAMENTO 





Dr. Cruz Malpique (1)


Há um famoso juramento de Hipócrates - o grande médico da Antiguidade. Pois sugestionados por esse juramento, aqui vamos deixar aquele que o Mestre deveria fazer, para exemplarmente cumprir.

1 - Terei pelos meus alunos a simpatia que tenho pelos meus próprios filhos. De certo eles o não são do meu sangue, mas são do meu espírito.Tudo farei para os ajudar a crescer em saúde física e espiritual. Responsável me considerarei perante mim e perante eles, se, feito um sério exame de consciência, esta me acusar de desleixos que poderia ter evitado, de concessões minimizadoras a que deveria ter fugido, de palavras que deveria calar, de conselhos que deveria ter dado e não dei, de atitudes que deveria ter tomado e não tomei. 

2 - Tudo farei para que os meus alunos ganhem saber, o mais possível de conta própria. O saber adquirido por esse processo é como a candeia que vai à frente - alumia duas vezes. Procurarei demonstrar-lhes que mais vale um erro original do que uma verdade copiada, porque, se, além, há trabalho produtivo, aqui há estéril preguiça.

3 - Tudo farei para lhes provar que a melhor pedagogia não é a de leite e mel, mas a pedagogia do esforço - um esforço vindo bem de dentro -, provado como está que a cultura não vem espontâneamente a nós, antes temos nós de ir a ela. Lembrar-lhes-ei que é temerário confiar exclusivamente nas qualidades naturais ou na inspiração. pelo contrário: a inspiração só dará a sua justa medida se for sincronizada com a transpiração, o trabalho pertinaz. A propósito lhes citarei o dito do grande inventor que foi Edison: Como alguém lhe afirmasse que ele era um génio, produzindo invenções, tão naturalmente como a pereira dá pêras, ei-lo que respondia, risonho, rebatendo a generosidade com que o mimoseavam: Genius is one per cent inspiration and ninety-nine per cent perspiration: «O génio é um por cento de inspiração e noventa e nove por cento de transpiração».
De certo não me esquecerei de lhes dizer que a definição de génio dada pelo famoso inventor tem bastante de caricatural: as proporções estão exageradas, para menos, na inspiração, e, para mais, na transpiração. Todavia, terei o cuidado de acrescentar que essa caricatura não passa de um exagero da verdade. O que Edison quis dizer foi isto: sem a inspiração nada começa, mas, só com ela, nada termina: é preciso associar-lhe, em alto grau, a transpiração, o reiterado esforço, a pertinácia que, como a água mole em pedra dura, tanto dá, até que fura...

4 - Demonstrarei aos meus alunos que saber só um conta; aquele que resulta da observação pessoal e directa, da experimentação flagrante, tudo acompanhado do espírito crítico que deslinda o trigo do joio, a farinha das ideias, do farelo das palavras. Mais lhes provarei, como corolário desta doutrina, que «saber de cor não é saber», mas simples palavrório, equivalente a cheques sem cobertura. Tudo farei para que eles não se fiquem no puro psitacismo, que consiste precisamente num saber de papagaio, que diz palavras, sem lhes ligar sentido inteligível.

5 - Procurarei demonstrar aos meus alunos  que cultura e erudição são são uma e a mesma coisa. Cultura é essencialmente, conexão de ideias, jogo de inteligência. Mais ainda: cultura é mundividência, espírito de síntese, visão do todo  articulado às partes, ou das partes ajustadas numa arquitectura lógica. Irei mais longe, e aos meus alunos provarei que cultura é conspecto geral do homem integrado na sociedade e possuído do vivo desejo de promoção nessa mesma sociedade. Erudição - e a prova por mim lhes será feita - é sobretudo saber acumulado, recepção do alheio, , memorização do que os outros criaram, mais (muito mais) do que assimilação inteligente, descoberta e investigação pessoais.
Diligenciarei, pois, para que os meus alunos em vez de cabeças atafulhadas, sejam cabeças bem arrumadas, arejadas, lépidas, sagazes, dotadas de apurado juízo crítico.

6 - Evitarei fazer-lhes crer que a especialização é tudo e que a cultura geral nada vale. se lhes metesse essa ideia nas cabeças, estaria formando espíritos míopes, quando, afinal, está no meu programa, torná-los perspicazes, de vista apurada para os largos horizontes. Eu lhes demonstrarei que a própria especialização tudo tem a lucrar com os alicerces de uma inteligente cultura geral. Se as Musas não fazem mal aos doutores, também a cultura geral - a das ideias bem relacionadas e tocando a todos os sectores do saber, do sentir e do querer - não faz mal aos especialistas. Muito pelo contrário, o profissional, antes de ser o que é na especialização, deve ser homem; a cultura geral tem o mérito de lhe emprestar essa humanidade.

7 - Aos meus alunos provarei, em todo o caso, que cultura geral não será simples amadorismo, coisa de pega e larga, tudo arranhando sem nada aprofundar. O meu propósito será fazer que eles, à força de saberem o tudo de nada, não fiquem hermeticamente fechados para as ideias-mestras que pairam acima dos pormenores, dando-lhes o sentido lógico da articulação ao todo.
Desviá-los-ei da errada ideia de que a educação se deve processar em sistema de compartimentos estanques: Letras para um lado, Ciências para outro. Pelo contrário, eu lhes direi que a educação a receber deve ser integral: fundo e forma. O homem que despreze a beleza literária, a beleza artística, a pulcritude moral, para se entregar exclusivamente à investigação científica, ou, inversamente, aquele que se toma de ares desdenhosos pela cultura científica, fazendo fica-pé apenas nas belas-letra ou nas belas-artes, está-se, automaticamente, minimizando. A vida não é só ciências experimentais, nem só literatura, nem só arte, - é um somatório de todas estas actividades, todas muito humanas, e, segundo o dito terenciano, de nada do que é humano o homem se deve distrair.
O Prof. P. Augier, referindo-se, algures, ao problema da especialização, assim se exprimia: «Diz-se, e muitos acreditam, que o nosso século será a  consagração definitiva do especialista. Parece-me que o contrário é que é verdadeiro, e que « o reinado do especialista já pertence à história».
Não direi aos meus alunos que o especialista já passou à história. O que lhes provarei é que, por amor do pormenor exaustivo, não deveremos - por isso ser contra os interesses do próprio homem - renunciar às perspectivas de conjunto. Eu lhes demonstrarei que quanto mais precoce for a especialização - com prejuízo da cultura geral -, de menos maleabilidade ele disporá, como homem, para se situar no mundo.

8 - Aos meus alunos ensinarei que o ler deverá ser, a cima de tudo, um pretexto para meditação pessoal. Ler por ler, pouco vale, se não se tomarem notas, para, em tempo oportuno, reflectir sobre elas, dialogando com quem saiba dialogar, ou aproveitando-as como maiêutica do próprio espírito, através da escrita, sabido como a caneta é uma óptima parteira da inteligência.
O ficheiro a organizar, mercê das mais variadas leituras, (assim o direi aos meus alunos) será sempre o ponto de partida para o espevitamento do espírito, e jamais um convite à pura citação dos textos alheios, o que, no fim e ao cabo, representa uma atitude de preguiça mental. Aos meus alunos recomendarei que, ainda mesmo quando nada digam ou escrevam de novo, façam, no entanto, diligências para se exprimir de maneira bem pessoal. Sobretudo lhes direi que aproveitem as ideias alheias como trampolim para, eles próprios, darem o seu salto à maior distância e profundidade que lhes for possível. tudo, menos repetir servilmente as ideias doutrem. Citar por citar só poderá deslumbrar outros citadores. Cerzir pensamentos alheios com as linhas do «diz Fulano, e diz muito bem, afirma Cicrano e com toda a razão o afirma», é uma actividade pouco gloriosa. Importa pois, (eu o acentuarei aos meus alunos), partir dos autores lidos para nós próprios. Não nos devemos perder nos outros. pelo contrário: neles nos devemos achar. Bom será que eles catalisem, de maneira positiva, a nossa personalidade.

9 - Aos meus alunos eu direi que trabalhem metodicamente ao longo do ano escolar, para que, na altura de prestarem as suas provas, se limitem a rever aquilo que, a pouco e pouco, foram estudando durante o ano. Eu os aconselharei a que, quanto possível, dialoguem as ideias com os seus camaradas, evitando o estudo solitário, silêncioso, monologado. Eu lhes direi que, será cotejando as suas ideias com as doutros que eles aprenderão a ver até que ponto elas estão certas, ou erradas. A controvérsia bem intencionada representa sempre um factor de progresso intelectual. Com insistência lhes direi: «evitem o narcisismo, que vos inclina, fatalmente, a considerar intangíveis as vossas ideias; antes devereis praticar a auto-ironia, que vos levará ao exame implacável dos aspectos fracos da vossa cultura, ou da vossa «erudição».
Aos meus alunos eu direi que o que importa é assimilar ideias, fazê-las espírito do seu espírito, e não decorar as palavras em que elas são expressas, vindas de outrem, de viva voz, ou por escrito. A expressão dos alunos, quando tenham de comunicar as ideias assimiladas, será sempre pessoal. Estarão tirando bilhete de ida e volta para o manicómio todos aqueles dos estudantes que tenham a presunção de memorizar textos, para os recitar ipsis verbis. Aos meus alunos recomendarei, pois, ora e sempre: assimilai as ideias, e depois procurai dar-lhes expressão pessoal; toda a ideia enunciada com palavras de outrem nos fica curtas nas mangas...; «il faut être soi«.

10 - Tomo o compromisso de não exigir dos meus alunos que se comportem, nas aulas, como se fossem estátuas, ou estampas. Quando lhes parecer oportuno levantar uma objecção, uma dúvida, uma discordância, não tenham receio de o fazer. Juro que os atenderei, não lhes farei má cara, antes os louvarei por quererem fugir à passividade, em favor do diálogo construtivo.
Não levarei à conta de indisciplina a circunstância de os meus alunos não aceitarem incondicionalmente o que eu disser. Se houver motivo para esclarecimentos recíprocos, só terei que me felicitar de ter discípulos que, mais que a Platão, amam a verdade. Não pedirei o falso respeito, mas o à-vontade de espíritos que mais prezam a iluminação das ideias do que o servilismo do sim, a tudo que o mestre lhes diz. A mim próprio prometo não ser um espírito dogmático, mas sempre metódica, à argumentação bem fundamentada. Não me tomarei por infalível, e terei a coragem moral de dizer «não sei, vou estudar o caso», quando realmente não souber. Tudo, menos explicações improvisadas, para salvaguardar aparências de sabichão que nunca é apanhado em branco e em bruto...

11 - Prometo a mim mesmo basear a minha pedagogia na psicologia do educando. Em vez de tomar este como entidade abstracta, antes o considerarei dentro da sua idade, com características específicas, e a ela ajustarei os meus processos de ensino. Terei sempre presente que para ensinar Latim a João, não basta conhecer o Latim, é preciso também conhecer João.

12 - Às aulas onde a ordem  seja a das telhas no telhado, preferirei as aulas onde o clima seja o da liberdade construtiva. Se há versos que são reles prosa às tiras, e prosa que, no fundo, é feita de autêntica substância poética, assim também há aulas muito ordeiras nas quais tudo é morto, isso a par de aulas que parecem anárquicas, mas que, no fundo, representam uma ascensão espiritual. Por estas serei, apesar dos comentários solenes em contrário dos Acácios, contra aquelas, precisamente porque têm aprovação dos Pachecos.

13 - Não tomarei, jamais, atitudes desdenhosas ou irónicas para com os meus alunos, nem porque sabem pouco, nem porque sabem mal. Em muitos casos, a culpa não lhes cabe. Cada um deles poderia dizer «eu sou eu e a minha circunstância». Eles nasceram no signo de certa família, tiveram determinados professores em anos anteriores àqueles que estão frequentando, viveram, não fora da sociedade, mas dentro dela. De todos esses lugares e de todos esses ambientes acusarão o toque. O professor emendará, corrigirá, diligenciará por apagar complexos de inferioridade, tomará a peito transformar o mau em bom, e subir, se possível, o bom a óptimo.
Dirá, pois, o mestre a si próprio: compreenderei para perdoar, e, nesta base, procurarei construir, anulando maus hábitos, criando entusiasmos, ensinando técnicas de trabalho eficiente, suscitando o gosto da problemática, sublimando energias mal orientadas, despertando vocações.

14 - Timbrarei em fazer dos meus alunos personalidades bem vertebradas: fomentarei neles o espírito crítico, contra o espírito de credulidade; cultivarei neles o sentido do fio-de-prumo da dignidade humana. Mostrarei aos meus alunos o que há de moralmente feio nas atitudes servis, estilo  yes - man, amém sempre na ponta da língua. Diligenciarei no sentido de que toda a educação seja libertação, fuga a tutelas minimizantes, criação de um vivo sentido de auto-governo, auto-domínio, auto-confiança, de independência conciliada com a independência dos outros, em atitude de se respeitarem mutuamente.

15 - Terei em muita consideração a cadeira cuja regência me foi confiada. Diligenciarei por estar sempre actualizado. Tudo farei para que o meu magistério valha principalmente pela qualidade. E se for Mestre universitário, de Capelo & Borla, tudo evitarei, pelos caminhos da probidade, para que, à cidade e ao mundo, não se diga que transformei a Borla em... Burla!
Terei, pois, em muita conta, a minha cadeira. Não a promoverei, em todo o caso, a centro do mundo, fazendo vista grossa sobre as outras que aos alunos compete estudar. As várias disciplinas devem harmonizar-se, e não hostilizar-se. Não se dará a uma excesso de tempo, para o roubar a outra que exige tanta atenção como as demais. E entrará nos meus propósitos não fazer compartimentos estanques com as várias matérias leccionadas: todas se devem correlacionar, entre ajudar, para, reciprocamente, melhor se compreenderem. A minha preocupação, através da diversidade, será alcançar a unidade.
Sim. Porei a minha cadeira ao nível da honestidade intelectual: o que ensinar, eu o ensinarei da maneira mais aliciante que me for possível, de tal modo que os meus alunos saiam, das aulas, cativados para aprenderem sempre mais e cada vez melhor.
Mas, para além da cadeira que ensino, primarei, sobretudo, em olhar a juventude com olhos muito humanos. Não tratarei os meus alunos como se na aula eles fossem coisa secundária, e só a cadeira que ensino devesse contar. Sou professor de Matemática, ou de Ciências físico-químicas, ou de Filosofia, ou seja do que for. Mas, acima de tudo, considerar-me-ei como professor de jovens que virão a ser homens feitos. Todo o professor deve ser, cumulativamente, ao leccionar a sua disciplina, um professor também de ciências humanas. Não diga ele: «Isto, aqui, é Química, e o mais é paisagem! Isto, aqui é Geometria, e o que está para lá destes perímetros não conta!» Se o disser, é caso para lhe replicarmos: «Perdoai-lhe, Senhor, porque não sabe o que diz!».
O professor - e esse compromisso eu tomo, essa jura eu faço - deve ser, sobretudo, homem que bem conheça a juventude, para nela despertar a curiosidade pela problemática debatida, o entusiasmo pelo saber. São aqui oportuníssimas as palavras do Engenheiro francês Luís Armand, antigo presidente da Societé Nationale des Chemins de Fer e da Eurotome, proferidas no Colóquio de Caen, não há muitos anos.
«Ponhamos francamente a questão: será verdade que os nossos adolescentes, depois de um certo período de toupeira, para alguns excessivo, após alguns exames difíceis na Faculdade, sairão mais ou menos curiosos do que aí encontraram? Que responsabilidade - se a resposta for que saíram menos curiosos! Tanto mais que lhes deram instrumentos mais que bastantes para que a sua curiosidade fosse multiplicada, tal como é ampliada a imagem de um objecto dado pelo microscópio.
O que se lhes deve ensinar é o sentido e valor da curiosidade que o mundo de hoje exige dos jovens.
Isto provocará a aceleração natural do ensino e da investigação e dará um entusiasmo e uma animação a essa juventude científica destinada a ocupar no mundo moderno um lugar digno do país».
O professor a si próprio jurará que todos os esforços irá fazer no sentido de alertar curiosidades e esquecer entusiasmos. A si próprio prometerá saber o que ensina e a quem ensina.
O problema humano não poderá o mestre dissociá-lo do problema pedagógico da matéria que ensina.

16 - Ensinarei os meus alunos a estudar. Na aprendizagem, eles entram virgens de técnicas de estudo. Mal andarei, pois, se não puser a minha experiência ao serviço do seu progresso. Cada disciplina tem a sua aprendizagem específica. Pois que professor seria eu senão comunicasse aos meus alunos a técnica de um estude eficiente na minha cadeira?
A inteligência vale muito. Mas minguada ficará nos seus resultados, se não trabalhar metodicamente. O método, de certo, não cria a inteligência, que é um dom natural, mas multiplica-lhe as virtualidades. Valendo ela cem, fará que ela passe a valer mil, ou até um milhão.
Não deixarei, portanto, que os meus alunos estudem ao acaso. Prometo, pois, - e do prometer passarei ao cumprir - ensinar-lhes a arte de estudar com real eficiência.

17 - Farei ponto de honra em ajudar a formar o carácter dos meus alunos, persuadido como estou de que o carácter é fundamental na vida do homem. A instrução enriquece a inteligência. É bom. A educação enriquece e fortalece a vontade, o que, porventura, ainda é melhor. E é na base da vontade que se alicerça o carácter. O homem de carácter, e, portanto, de vontade bem vertebrada, é o homem capaz de se governar a si próprio. Não precisa da tutela dos outros. É o homem da disciplina interna, não precisa que o disciplinem de fora. Não pretende ser capitão de ninguém: é capitão de si mesmo. Só admite a ditadura praticada por ele próprio, em relação a si mesmo.


*

E, agora, que já estava a tardar..., a


SÚPLICA (QUASE ENFÁTICA) DO DISCÍPULO (JÁ ESPIGADOTE), DIRIGIDA ÀS MUSAS DA PEDAGOGIA

(Continua)



(1) Apesar de busca investigativa, não se conseguiu identificar o Pintor, (pela amostra, retratista de excelência), o local onde se expõe ou se guarda esta obra, o fotografo do quadro, e o media de onde e por quem passou ao Google crome de onde o extraímos. Pena... . Repare-se, todavia, nele se ler no canto inferior esquerdo a inscrição Portal de Niza.


O copista,
Rui Abrunhosa

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quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

PENSAR ESCREVENDO, ESCREVER PENSANDO ~ 2ª parte.






Uma página por Cruz Malpique


(Continuação)





O BINÓMIO MESTRE -DISCÍPULO
Duas Súplicas e Um Juramento




Cruz Malpique - Luanda - 1937 (a)

9 - Fazei que eu descubra e respeite a vocação dos meus alunos (1).
Um dos maiores suplícios que ao homem pode caber é ter de se entregar a um trabalho que esteja em desacordo com a sua vocação. Esse desacordo não representa, apenas, em muitos casos, um prejuízo de ordem económica, representa, outrossim, um vazio de alma, provado como está que o trabalho realizado com gosto ajuda o homem as realizar-se espiritualmente.
Vocação é chamada de dentro e a melhor maneira de nos realizarmos por fora, é acudirmos à chamada de dentro. O signo do nosso destino está, muitas vezes, na repercussão por nós dada a essa voz interior.
Vocação e, portanto, profissão, que é aqui que ela culmina. Profissão todos a devemos ter, e o mais próximo possível da vocação. A profissão é, de uma só vez, dever para connosco (o dever de nos bastarmos a nós próprios - ou de "levantarmos o nosso próprio peso", como disse alguém), e dever para com a sociedade, na qual devemos ser "pedra viva", em vez de "pedra morta".

10 - Fazei que a minha escola não seja caserna, mas que não seja também uma casa libertária, onde tudo me fosse permitido. Sinto que não posso deixar à solta a minha natureza, de lhe criar hábitos construtivos, de dizer não a umas quantas das suas inferiores solicitações, de dizer sim a uns quantos inferiores ascetismos que me assegurem a vitória de mim sobre mim mesmo, provado com está que mais vence quem mais se vence.
Um homem diz-se disciplinado, na medida em que, dia-a-dia, se vai construindo a si próprio, passando de homem a mais homem, e, para isso, congemina os meios e prontamente os põe em prática, transpondo obstáculos, fugindo a distracções, vencendo-se a si mesmo, nas suas tendências inferiores. O homem disciplinado gosta de comandar os outros para a realização de uma obra de utilidade social. Mas a quem ele, sobretudo, gosta de comandar é a si próprio, que a disciplina, bem entendida, como a caridade, por nós mesmos deve começar. 

11 - Fazei que a escola não seja fábrica de exames, mas viveiro onde se preparem cidadãos prestantes.
Durante muitos séculos a escola foi essencialmente memorialista, e julgava-se, dos que frequentavam, sobretudo pelas noções decoradas. Decoradas e... decorativas!
Hoje, essa concepção está ultrapassada. Julgamos os indivíduos, muito menos pelo que decoram do que principalmente pelo que fazem em função da capacidade de pensarem por conta própria. O bom cidadão não é o que melhor cumpre na chinesice dos exames, mas aquele que com maior eficiência social actua nas relações humanas. 

12 - Inspirai os altos comandos a que reduzam os programas escolares às ideias fundamentais e funcionais, de maneira a que os meus discípulos não se percam no mundo da quantidade e do simples palavreado, fora da observação directa e da experimentação flagrante.
Certos programas congestionados e, para mais, ministrados na base do puro memorialismo psitacista, são da qualidade de idiotizar e cretinizar ainda os espíritos mais lépidos. Há aí, com efeito, certa espécie de ensino mais da qualidade de fechar do que de abrir inteligências. Ainda não perderam inteiramente a sua actualidade as palavras de Rabelais, relativas a Gargântua:
«Vraimente [Gargantua] éttudiait très bien et y mettait tout son temps, tourefois rien ne profitait. Et qui pis est, en devenait fou, niais, tout nerveux et rassoté». Mais lhe valera «nerien apprendre que tels livres, sous tels précepteurs, apprendre. Car leus savoir n`est que besterie, que moufles abâtardissant les bons et nobles, espirits, et corrompant toute fleur de jeunesse».
Montainge dizia de toda a juventude francesa o que Rabelais dizia do seu herói. Os meninos estavam muito espertinhos na escola, sim senhores, mas saíam de lá brutinhos que nem uma porta, por obra e... desgraça de um ensino todo memorialista, psitacista e outros -istas, destes ou parecidos géneros. A pedagogia de então era a arte de embrutecer. Que o diga Montainge:
«Que mon écolier eut passé le temps à jour à la paume: au mouns le corps en serait plus allègre. Voyez-le revenir de là, , après quinze ou seize ans employés: il n`est rien si mal propre à metre en besogne. Tout ce que vous y reconnaissez devantage, c`est que son latins et son grec l`ont rendu plus sot et plus preésomptueux qu`il n`était sorti de la maison: Il en devait rapporter l`âme pleine, il ne l`en rapporte que bouffie, et l`a seulement enflée au lieu de la grossir».
Ela assim, vai para cinco séculos. Não se vê que nestes nossos tempos de agora as coisas se tenham modificado muito, por quanto os processos de ensino continuam ainda a ter muito de rotineiros. A rotina pedagógica pesa toneladas sobre as nossas escolas.

13 - Livrai-me de encaminhar, precocemente, os meus discípulos para a especialização estrita. que eles ganhem, quanto possível cultura geral, deixada e especialização para quando frequentarem a Universidade. Aliás, com a cultura geral. Como dizia Vítor Duruy, «il faut être universel au profit de la spécialité».
Em desfavor da especialização estrita se pronunciam uns quantos. Dizem eles que as ciências estão de tal maneira ligadas, formando cadeia lógica, que mais fácil é aprendê-las em conjunto do que aprender uma só desarticulada do todo sistemático ao qual pertence. A parte só ganha significado inteligível, quando integrada na unidade onde desempenha função específica. As partes e o todo, este e as partes, auxiliam-se mutuamente na sua inteligibilidade. Textualmente escreveu Pascal:
«Je tiens impossible connaître les parties sans connaître le tout, non plus que connaître le tout sans connaître particulièrement les parties».
Nada melhor que a especialização, com a condição, porém de se alicerçar numa cultura que se processe no sentido da universalidade. A especialização é a visão, em profundidade, de um sector restrito, mas, porque este só ganha significado inteligente quando articulado ao contexto cósmico, importa que nunca se percam de vista as perspectivas de conjunto, a larga mundividência.

14 - Inspirai-me para que eu crie nos meus discípulos o gosto da cultura, mas não o da erudição.
O homem culto toma atitude muito diferente da do homem erudito, porque, com efeito, enquanto o culto é, acima de tudo, um espírito progressivo, diligenciando ir sempre além do que já foi investigado, abrindo novas perspectivas, o erudito é, fundamentalmente, o conservador, o registador do averiguado, o repetidor do alheio, o medroso da novidade.
O homem intelectualmente culto não é o que domina muitas ideias alheias, e que só para elas vive. Não. O homem intelectualmente culto, sem passar sumária esponja sobre o saber investigado por outrem, timbra, sobretudo, em investigar de conta própria; é, fundamentalmente, o que a palavra inteligência está insinuando: leitura no âmago das coisas ou, acima de tudo leitura das relações que interligam as coisas, as ideias, os factos, os fenómenos, os acontecimentos. Relacionar o novo com o já adquirido, assimilar o inédito ao antigo, sempre no estilo da teste bien fait, em desfavor da cabeça simplesmente atafulhada, ou da teste trop pleine, eis o que o homem inteligentemente educado faz, e de que o homem memorialista, ou eruditão, é incapaz.

*   

E na sequência desta Súplica é aqui oportuníssimo o

Juramento do Mestre 

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(1) É preciso , todavia, dizer que há aí quem não aceite a existência de vocações precoces (caso de Pascal, para as matemáticas), e se ria do monocefalismo: marcados uns para a literatura, outros para as ciências, uns para o pensamento, outros para a acção... São esses tais que dizem haver meninos que se julgam marcados para a poesia e acabam engenheiros. Claude Bernard, por exemplo, julgava-se, primeiro, talhado para o teatro, e chegou a escrever peças, que lhe foram rejeitadas. Foi então, que se voltou para a investigação científica, no sector da fisiologia, e, aí, foi astro de extraordinário fulgor.
Portanto, concluem esses tais, a vocação faz-se. Faz-se, não nasce feita. Os pequeninos Padrerewskis ou Mozarts são mais raros que as esmeraldas azuis.
Deixamos o caso à ponderação do leitor.


O Copista,
Rui Abrunhosa                                                                                                                          (continua)


(a) Apesar de esforços não conseguimos identificar autor, orígem e local ou locais de publicação.
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quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

PENSAR ESCREVENDO, ESCREVER PENSANDO - 1ª parte.





uma página por Cruz Malpique



Em 1976 a Liga Portuguesa de Profilaxia Social publicou o seu opúsculo número 42 com a conferência realizada pelo Dr. Cruz Malpique no Clube Fenianos Portuenses, em 5 de Dezembro de 1973 a que deu o título que agora, e a seguir,  reproduzimos.

Atravessa a sociedade portuguesa desde há já algumas décadas o  gravíssimo problema da educação dos seus cidadãos. É conhecida a preocupação que o Dr. Cruz Malpique sempre mostrou no relativo às condições pedagógicas que têm de rodear e promover o alcance de processo educativo para uma inteira vida inteira de cada um de nós.

Reli há duas ou três semanas o texto dessa conferência. Fez-me sentir um calor de alma pela felicidade de ainda ter esperança de um dia nós, portugueses, todos, virmos a ser capazes de construir o edifício educativo que de cada um de todos nós faça o que cada um de nós é, potencialmente. Achei em conversa entre mim e mim que poderia ser valioso pôr à disposição de quem tenha a sorte de, através do nosso blog, vir a ler o texto desta conferência.

Numa perspectiva de confecção de uma qualquer colaboração para  blogs deve ser tido em conta um certo constrangimento no que respeita à extensão dos textos. Relanceando um olhar sobre os nossos jornais da segunda infância - O Mosquito, o Diabrete ou o Cavaleiro Andante - ocorreu-me o sofrimento da chegada à linha onde, entre parênteses, estava, solitariamente, a palavra, continua. Com mais luxo também diziam continua no próximo número. Em consequência, encontramos a solução para a publicação completa do texto desta conferência, partindo-a em vários bocados, sempre prometidos pela palavra continua. Talvez o tal sofrimento do continua vos desperte a curiosidade, e o interesse, pelo episódio seguinte. O processo psicológico é igual ao das telenovelas e, mais antigamente, aos folhetins de Camilo, Eça,  Ramalho, mais recentemente o meu colega João Araújo Correia, enfim, de muitos outros belissimos escritores. Estes folhetins, em geral, apareciam estampados numa barra com mão travessa de altura , no fundo dos fundos da última página dos jornais diários..

Vamos portanto dar início à publicação do trabalho do dr. Malpique sobre as responsabilidades do Mestre e do Discípulo na construção da Pessoa, de cada Pessoa, com a originalidade irrepetivel que cada uma delas é. Escreveu-o em Dezembro de 1973. Tinha 71 anos.






1919 ~DR. CRUZ MALPIQUE, ESTUDANTE. 17 ANOS DE IDADE


   « O BINÓMIO MESTRE-DISCÍPULO             Duas Súplicas e Um Juramento


Suplica (quase enfática) do Mestre (que se estreia), dirigida às Musas da pedagogia      

1 - Eu sei que o magistério é honor, mas sei, outrossim, que também é - e principalmente - onus, o que, dito em português de lei, se pode assim exprimir: eu sei que ensinar é uma honra, mas sei também que, a par disso, é um peso, e dos maiores. A honra é o inefável da profissão. O peso é o trabalho extenuante de todos os dias, para abrir os espíritos à luz da verdade, às emoções do belo, aos sentimentos de uma doce humanidade.
Pois dai-me amor, tal e tanto, que eu possa sem desfalecimentos, abrir esses espíritos para a luz da verdade, para as emoções do belo, para os sentimentos da doce humanidade. Fazei com que eu consiga o milagre - que o não há maior - de lapidar brutos diamantes, para que de si, despeçam todo o fulgor possível; de fazer da natureza humana uma obra prima de curiosidade alerta para todos os segredos do mundo, uma inteligência capaz de ler as relações que ligam as coisas entre si; uma vontade capaz de vencer todas as adversidades; um poder de iniciativa que meta todas as lanças na áfrica das dificuldades; um espírito crítico que deite por terra todas as superstições; uma fé que remova todos os obstáculos à realização de um mundo melhor.

2 - Fazei que eu consiga insinuar na alma dos meus alunos o formoso dito de Lessing: "Se Deus me desse, na sua mão direita, a verdade já acabadinha, e, na sua mão esquerda, a possibilidade de eu a descobrir pelo meu próprio esforço, não hesitaria: eu me decidiria pela segunda dádiva, contra a primeira".

3 - Dai-me discípulos que de mim precisem, só temporariamente. Sei, com saber de experiências feito, que os discípulos que mais honram os mestres não são aqueles que os seguiram servilmente, mas antes os que, em tempo oportuno souberam conquistar a sua carta de alforria. Nada melhor do que passar pelos mestres, com a condição, porém, de tudo fazerem, para deles se libertarem, com rumo à sua individualidade específica. Dos discípulos subservientes não reza a história, a não ser para lhe dar as zabumbadas da troça.
O educador, para merecer este título, deve ser, acima de tudo, um electrizador de espíritos, um catalisador de específicas originalidades. O seu papel não é substituir-se ao educando, mas, pelo contrário, propiciar que este se afirme, o mais possível, sui generis e sui juris. Criará nele o sentimento da auto-desconfiança, a fobia de tutelas que lhe minimizem a personalidade. Despertará nele o gosto da  resposta de conta própria, contra a resposta meramente psitacista.

4 - Fazer que eu, sendo embora mestre por natural vocação, não me dispense de assimilar a experiência doutros mestres. Não quero ser acusado do pecado da soberba, que consiste em supor que sou capaz de tirar de mim mesmo toda a teia, às maneira da aranha. Não quero eu dizer como certos idiotas, segundo os quais a experiência alheia, é tal que, com ela ou sem ela, a pessoa fica tal e qual... Sinto-me no dever de me aperfeiçoar, hoje mais do que ontem, amanhã mais do que hoje, e para cumprir essa obrigação deontológica a experiência alheia muito me pode aproveitar, se conjugada com a minha própria. Tola seria a presunção de me conmsiderar de uma originalidade absoluta, tendo eu chegado muito tarde a um mundo já muito velho. Com efeito, como o poeta, sinto ganas de dizer:

"Je suis venu trop tard dans un siècle trop vieux".

Fazei que eu, dia-a-dia, aprenda com os outros mestres e com os meus próprios discípulos; e, de facto, muito tenho aprendido com estes, provado como está que docendo discendo. 
A teoria e a experiência pedagógicas devem ser aproveitadas, venham donde vierem. E é até frequente virem de fora da escola oficial. Rousseau não era professor oficial. Tão-pouco Montaigne, nem Rabelais. E todavia deram directrizes admiráveis ao ensino. Por mais paradoxal que possa parecer, as grandes reformas pedagógicas (exactamente como as grandes descobertas e invenções científicas) não promanaram das escolas oficiais.

5 - Fazei que eu leia sempre de caneta na mão, tomando as minhas notas, não para as citar, com chamadas a um roda-pé erudito. Fazei que eu tome as notas como pretexto para meditação pessoal - mas meditação escrita. Sei, de experiência, que a caneta é óptima parteira do espírito. Fico surpreendido com o que ela me tem revelado, e de que eu nem sequer suspeitava! Pouco adianta, a reflexão feita no cadeirão preguiçoso, nós a tirar baforadas do cigarro, e a esmagar-lhe a cinza, com a unha à catita ...

6 - Fazei que eu não transforme os meus alunos em papagaios, a quem, as palavras ficam curtas no bico. Psitacismo, nem pintado! Fazei que eu ensine os meus alunos, essencialmente, na base da experiência, de tal modo que as palavras por eles proferidas não tenham o valor de cheques sem cobertura. Está de há muito averiguado que "saber de cor não é saber". Aprender fazendo - learning by doing - tal deve ser a divisa numa escola que tenha no seu programa servir a vida. escola só uma se tolera em nossos dias - a escola activa, na qual os alunos se preparam realmente para os honrados triunfos na vida.

7 - Que me seja, pois, dado ensinar em escola activa, a do aprender fazendo.
A escola activa - com trabalhos manuais: de carpintaria, de serralharia, de encadernação, de ... - tem valor pela destreza que traz às mãos, e porque pode ser - e é - uma compensação do trabalho intelectual.
Mas, para além disso, tem valor, porque dignifica uma actividade que aos olhos dos primários do alfabeto, descategoriza. Esse trabalho liberta-nos da superstição do puro livro como instrumento de cultura.
Não há razões válidas para que o trabalho intelectual despreze o trabalho manual. Tão-pouco as há, para justificarem que o trabalho manual vote ao desprezo o trabalho intelectual.
É preciso eliminar os preconceitos que separam essas duas espécies de trabalho. E hão-de realmente desaparecer, no dia e hora em que o músculo se intelectualizar um pouco mais, e a inteligência se musculizar o necessário
O homo faber tem que ganhar seu quê de homo sapiens, e este, por sua vez, um pouco do homo faber.
Importa fazer das coisas, dos factos, dos fenómenos, tema e ...teima. Palavras desalicerçadas desse mundo concreto são simples palavras, ou sopros de voz. Com a nossa educação psitacista só psitacistas podemos formar. Papagaios e só papagaios. O que o aluno quer não são palavras, meras palavras, mas a realidade flagrante, sensível, experimental. Daí é que se deve partir. Nada de alunos psitacistas! Dos alunos psitacistas que só mostram boa boca para o memorialismo que deles exigiram, bem podemos dizer, com Berkeley: «são incapazes de levantar o cortinado das palavras para verem a realidade das coisas». Não têm sombra de iniciativa. Não sabem de que cor é a originalidade. São meros receptáculos de palavras. Carecem do gosto da investigação por conta própria. Apenas sabem repetir. Não sabem ler dentro das coisas, nem as sabem relacionar. Numa palavra: não são inteligentes, no sentido etimológico desta palavra. Com efeito, ao que dizem os etimologistas, inteligência tem que ver com intus+legere (ler dentro das coisas), ou com inter+legere (ler as relações entre as coisas).
Toda a educação, para realmente merecer o nome, será da qualidade de exercitar e fazer agir o educando, levando-o a um exercício bem pessoal, espontâneo, livre. O pássaro nasceu para voar como o homem para trabalhar. A acção está na própria estrutura psicológica do educando, que detesta a passividade - quer física, quer mental. A escola cumprirá a sua missão, na medida em que suscitar um clima de acção, no qual o aluno se sinta como peixe na água. Corpo e espírito pedem exercício, sob pena de se ancilosarem. O corpo requer o desentorpecimento. O espírito pede problemas, para que a si próprio diga: penso, logo existo.
O grande professor será, pois aquele que tudo propicie ao educando, no sentido de ele se poder afirmar como criatura marcada para a acção. Já alguém disse que, da parte do professor, o que verdadeiramente vale não é aquilo que ele faz, mas, sobretudo, aquilo que leva o aluno a fazer.
Se, portanto, o educando é, de sua natureza, um ser que pede actividade de corpo e de espírito, dê-se-lhe a escola que lhe está a carácter - a escola activa.

8 - Fazei que eu não abuse da minha autoridade, querendo os meus alunos em silêncio profundo, quando, em boa verdade, comigo deviam dialogar. O monólogo puro fez seu tempo. Sob certo aspecto, a aula ainda quando não é laboratório de Física ou Química, ou doutra qualquer ciência da Natureza, é laboratório da palavra, colocada ao serviço do jogo das ideias hauridas nas mais variadas vivências. Importa que a aula seja pretexto para conversa viva sobre os temas do programa, e o ponto de partida serão dúvidas a resolver, objecções a opor.
A autoridade do professor é indispensável para que se mantenha certa disciplina, sem a qual reinaria a anarquia - e na anarquia ninguém se entende.
A educação é um binómio - o binómio mestre-discípulo. Não basta que o educador morra de amores pela sua missão, importa que o educando se mostre dócil aos desejos do mestre.
Como obter, porém, essa docilidade? Indo ao encontro das características biopsicológicas do educando, sem o que nada feito, ou tudo mal feito. O educando não é uma entidade abstracta, não é uma criatura estandardizada. Cada discípulo tem seu quê de específico.
A educação tem que ser primordialmente obra do educando. O mestre será, essencialmente um catalisador positivo das virtudes do seu discípulo. Exercerá uma função de estímulo, se quisermos falar à latina, ou em função hormonótica, se houvermos de nos exprimir à grega... O mestre, na verdade, deve ser agulhão; deve ser um parturejador das qualidades do seu discípulo.
A autoridade do professor é, de certo, necessária, junto do educando. Mas deverá ter sempre um papel majorativo, relativamente à personalidade do aluno. Fará que esta cresça, que se afirme. a autoridade só tolherá a liberdade do educando, na medida em que esta o prejudique, transformada em licença arbitrária. Dando particular atenção à pessoa do discípulo, não se vê que o mestre o esteja adulando. Está apenas fazendo que não se perca uma personalidade. Mal andaria o mestre se, em vez de um homem bem vertebrado, bem senhor de si, tivesse nos seus propósitos formar um homem  de rebanho. Abrenúncio!
Paradoxalmente, a autoridade do professor tem que harmonizar-se com a liberdade do aluno. Que espécie de autoridade? Que espécie de liberdade? A autoridade será doce e firme e tal que, nunca, por nunca!, diminua a personalidade do aluno, antes ajudará a formá-la. A liberdade será tal que, posta em prática, não desande em licença, não redunde numa despromoção da personalidade, e a mim me quer parecer quer haverá sempre minimização da personalidade, desde que ao aluno se permita (ou ele se permita a si próprio) a sujeição da razão às tendências inferiores. A personalidade é uma construção de todos os dias. É um triunfo da cultura sobre a natura.
O rio segue na linha das menores resistências, e por isso mesmo é que ele é torto. Mas é seguindo pela linha torta que ele vai direito (=directo) ao mar.
O homem que segue na linha das menores resistências - aquele que se deixa ir atrás dos seus pendores naturais, sem lhes contrapor um programa de superação de si próprio, construindo-se dia a dia - é também à maneira do rio, um homem torto. Com uma diferença, todavia, e essa profunda: é que o rio torto, abre caminho para o mar, através da sua tortuosidade, o homem torto, abre caminho para a... morte física e espiritual, deixando-se ir segundo a caprichosa lei dos seus naturais pendores.
Que o rio seja apenas natura, não vai nisso mal nenhum. O homem, porém, não pode ser só natura: há-de ser, fundamentalmente, cultura.
O homem, se quiser formar-se como carácter, não pode deixar a natura à solta, tem que lhe sobrepor a cultura. E cultura, no caso presente, é auto-domínio, auto-resistência, auto-mortificação, perante as solicitações naturais que o dominam como homem. O violinista "magoa" as cordas para que ele toque melhor. O escultor "magoa" o mármore para que ele possa desentranhar-se na bela estátua. O homem, por sua vez, precisa de se magoar pela disciplina, para se promover de humanus a humanior. O carácter é uma conquista pessoal de todos os dias.

                                                                                                                                (continua)

O garimpeiro que encontrou  este diamante,

Rui Abrunhosa,

agradece à Assistente Fernanda Santiago a sua disponibilidade para compor e editar este trabalho.
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