LAH1954

um blog de antigos alunos do Liceu de Alexandre Herculano, do Porto

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O GRILO COXO







PROF. AMADEU SARAIVA  REGADA






Pouco posso dizer 
Tive com ele um convívio minúsculo.
Qualquer coisa como pelos 10 ou 15 de  Outubro de 1947, era uma sala com um anfiteatro de 5 ou 6 degraus, de tosca madeira, suja dos  pós em que se transformaram as lamas dos  sapatos do anterior ano cantantocolectolectivo e, ainda, um orgão de bufar com os pés, que eu, com a minha profunda ignorância musical - 10 anos de idade -  nunca tinha visto. Era de madeira, de tom acastanhado, desbotado pelo tempo, com uma fisionomia triste. Por baixo de uma caixa que fazia barulho e tinha um teclado com dentadura branca e negra, viva, havia duas tábuas presas numa ponta mais levantada, por uma correntinha que se dependurava do perineo da caixa, Sobre as tábuas dançavam,enigmaticamente, dois pezinhos de estranhas botinhas onde, dos lados, se prendiam ferragens.Pareceu-me que trepavam,  por dentro duma calça cinzenta, através de uma  misteriosa cadeia de peças metálicas até um algures alto nos dois muito curtos membros inferiores. Encostada ao lado direito do órgão estava uma bengala, curta e modesta. Barata..
Sobre o anfiteatro sentavam-se 31 gargantas. O programa da aula consistia em se avaliarem as capacidades e qualidades que cada um de nós teria para poder cantar em um orfeão. Eu era o 27 e, por isso, só já fui avaliado na aula seguinte. Os que tinham a chamada boa voz eram confrontados durante um tempo apreciável com o suar do orgão tocado pelo Professor Regada. E chega a minha vez. Já me não lembro qual seria a peça musical, mas admito que o Hino Nacional. Com uma cabeçada para a frente depois de uns movimentos estranhos com os ombros é-me dado sinal de iniciar o canto em consonância com a música. Talvez tenha tido a grande oportunidade de enunciar numa voz supostamente cantante três, quatro ou cinco palavras, lá do texto da cantoria, quando sou bruscamente interrompido pela paragem súbita do orgão e um gesto alargado com a exclamação: "este já está". Estava feita a pronúncia. Eu não tinha nem voz nem ouvido. Nada. «Podes-te sentar» e assim fiquei à espera, sentado, de que acabasse o ano escolar daí a 9 meses. Foi esta toda a minha convivência e experiência com o Professor Regada.
Não era muito expansivo durante o treino, digamos assim, que ao longo do ano ia fazendo com os que tinham ouvido e voz. O treino ora era solitário ou em pequenos grupos de pequenos cantores. À medida que o ano ia andando, agora e logo, os grupos iam-se reunindo e fazendo mais barulho em grupos maiores. Já eram ouvidos no corredor. Depois das férias de Páscoa havia já a noção de quem poderia afinal aspirar a vir um dia a ser componente do Orfeão do Liceu Alexandre Herculano.
Tenho como únicas lembranças do Professor Regada o vê-lo passar nos corredores apoiado na sua bengala e com o passo próprio de quem tivera paralisia infantil, num tempo em que não havia ainda a vacina contra o vírus da poliomielite. Pouca sorte teve o Prof. Regada quando o sacana do vírus se lembrou de com ele vir ter.
O Professor Regada tinha porém a capacidade de atracção do interesse de alunos que o quisessem ouvirconversando com eles depois de acabadas as aulas. O canto coral era em geral ao fim do dia. Estou a ver o Professor Regada de tronco forte, cabeça levantada e perna curta pela Avenida Camilo abaixo completamente tapado por um enxame de alunos que todos os dias o acompanhavam Avenida abaixo, de orelha esticada para lhe ouvirem o que dizia. Tinha que dizer coisas muito importantes. Ou, de outro modo se não entenderia o porquê do enxame. Nunca participei numa secção destas. Não sei o que nelas se conversava. Sei que este era o perfil generalizado dos Professores que fui encontrando durante os 7 anos que trabalhei como aluno do Liceu Alexandre Herculano.
Tinham um "je ne sais quoi" de magnetismo com que eram sempre atraentes quando ensinavam e quando educavam.


Rui Abrunhosa 

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sábado, 3 de dezembro de 2016

SETE ANOS DUAS VEZES POR SEMANA






OMBROS PARA TRAZ !... COSTAS DIREITAS !... PEITO PARA FORA !... BARRIGA PARA DENTRO !  ...


DR.JOÃO FERREIRA DE SOUSA




Era Médico.

Desconheço o seu percurso profissional até ser professor efectivo de educação física no nosso Licev. Nunca tive oportunidade de  conhecer esmiuçadamente o seu currículum..

Mas em  meados de 1957 eu tinha já uma ideia de como conhecia ele a organização geral do ser humano, de modo particular desde os respectivos 10 até aos 17 - 18 anos de idade.
Dito de outro modo, eu acabara então os dois anos curriculares de estudos anatómicos, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.. Mais tarde, muito mais tarde,terminados trinta e quatro anos como docente de anatomia, tive a certeza: o  Dr. Sousa via-nos como se fossemos de vidro, na nossa  organização estrutural, .sempre progressivamente variando ao longo daqueles sete anos.Sim, sete anos ! ...e aqui a excelência com que se planeavam as coisas naquele liceu. No nosso tempo, eram planeadas para nós  discentes.

O Dr Sousa foi nosso educador físico ao longo de sete anos seguidos. Conhecia-nos pormenorizadamente nas nossa características evolutivas e, por isso, metodicamente nos apresentava e fazia aprender e realizar a exercitação osteo-artro-neuro-muscular apropriada ao nosso momento  desenvolvimental E mais, orientava, fomentava, estimulava esse desenvolvimento, ao longo da correta validade dos caminhos a percorrer em função do momento evolutivo de cada um. Por exemplo , lembro bem, aos 10 anos fazia-nos percorrer uma longa trave a 2 palmos do chão , de braços abertos , em lenta passada , para nos desenvolver o sistema proprioceptivo e os processos outros que governam o equilíbrio .Anos depois esse exercício continuava, mas a 2 metros do chão sob o resguardo de um colega, de cada lado, caminhando, sempre sob  a extrema atenção de cada um deles, para  se prevenir ... just in case... uma queda menos segura.

Saltava-se o pilinto desde o 1º ano... corriamos, faziamos  o salto e trupla !... caíamos de anatomias traseiras (cito Malpique) no meio do pilinto. As coisas iam-se complexando.
No ano 7º só já 7 da minha turma de 30 saltavam um duplo pilinto, disposto em T e com todas as «caixas» de ambos. Uma altura de cerca a dos ombros de um homem adulto, 

As sapatilhas eram as "do Chinês" (constituidas por uma lâmina branca de borracha vulgar onde se inseria uma lona branca em formato de sapato - e tinham atacadores.). Não havia trampolim nem conhecia-mos ou  jamais  ouvira-mos falar de tal atavio. De longe, depois de momentos de concentração, corria-mos em movimento uniformemente acelarado  e, atingido o momento   de um " je ne sais pas quoi " fazia-se «A Chamada».Silenciava-se o Universo, depois de se calar o último passarinho.  E voava-se, horizontalmente ao chão, deste modo se percorrendo o mostrengo até se aterrar,  após a  extremidade oposta do complexo de barreira. Uma intensa e silenciada alegria interior percorri-nos, célula por célula, todo o corpo triunfal do nosso contentamento. «CONSEGUI»!.. Com elegância, abrindo depois os braços, para garantir o equilíbrio após a travagem súbita, mas, também, porque não confessa-lo, com a nobreza da humildada, invadidos por uma pontinha piquerricha de orgulho a roçar ao de leve, a vaidade... CONSEGUI!: Era este o segredo do Dr. Sousa: educar-nos para CONSEGUIR!. Que Homens aqueles Professores!.sempre de olhar "grudado" nas metas dos conseguimentos.

Não me lembro, nem jámais me constou, que alguém se tenha magoado, lesionado ou vitimado por acidente. Era tudo feito em completa e, às vezes, complexa segurança. o que nos desinibia.. 

A penúltima vez que vi o Senhor Dr. Sousa já eu era internista no Hospital Escolar de S. Joâo. Assim se chamava e assim era à época:. Pela meia noite,um dia, estava eu "de urgência" quando vejo entrar pelo átrio do Serviço de Urgência  uma maca movida com alguma velocidade, pelos maqueiros e, transportando uma senhora com idade aparente de mais de 60 anos, loira, de lábios pintados de vermelho, só com o queixo de fora do lençol, abrindo em alta frequência respiratória as asas do nariz e, a seu lado, como que ajudando os maqueiros com uma mão pousada no bordo da maca, o Sr. Dr. Sousa. Dá de olhos nos meus olhos, abre-se-lhe o rosto em surpresa pacificadora de ansiedades  ante atmosferas at-e ali desconhecidas, e, largando a maca dirige-se a mim com lágrimas bailando no bordo das pálpebras dizendo-me: Rui acho que vai morrer. Era médico e tinha a perfeita noção da condição clínica de sua Esposa.
Logo estudada imediatamente, pelo grupo de cardiologia, ao fim de uma ou duas horas já recuperara abundantemente e, pela noite fora, foi ganhando características para a poder fazer-se movimentar para um internamento de cuidados mais aligeirados.

Três ou quatro dias depois O Dr. Sousa telefonou-me, pelo meio da tarde, pedindo-me, "no caso de me ser possível" (Sic), para  lhe passar lá  por casa. O que fiz imediatamente. Encontrei uma casa modesta, de homem que desenvolveu toda a sua vida, e já estava reformado há alguns anos, olhando com os olhos postos na meta do dever cumprido, com ética, todos os dias, até ao fim do dia, e não na meta da pista do dinheiro.

Sua Esposa estava sentada num maple  com os joelhos cobertos por uma manta e um roupão branco. Sorriu-me triste e estendeu-me vagarosamente  sua mão, que logo notei tinha as unhas de coloração levemente arroxeada, mas não batia as asas do nariz. O Dr. Sousa sabia muito bem que ela estava razoavelmente compensada pela medicação que trouxera do hospital. Mas sabia também que de um momento para o outro podia descompensar. Discutimos os dois a situação, interrompendo o diálogo com perguntas apropriadas à doente. Voltei lá, a seu pedido, uma segunda vez, poucos dias depois. Após cerca de um mês ,falecia, enquanto dormia. 
Nunca mais voltei a ver o Sr. Dr. Sousa. Deixou-me a lição da sua humildade e da sua preocupação em fazer bem o que fazia.
O Sr. Dr. Sousa tinha hoje muito que ensinar à nossa juventude, à nossa gente em geral, aos nossos políticos em especial e, sobretudo, às famílias dos mais de três mil alunos do ensino secundário que no ano passado fisicamente agrediram seus professores durante as aulas: HUMILDADE.  TER A PREOCUPAÇÃO DE SE FAZER BEM O QUE SE FAZ. E Portugal não estaria hoje, certamente, nos péssimos lençóis em que dorme. Todos os dias.
Dorme!!!, òvistens???. ..

RUI ABRUNHOSA