LAH1954

um blog de antigos alunos do Liceu de Alexandre Herculano, do Porto

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

A PRIMEIRA VEZ QUE ME CRUZEI COM O DR. CRUZ MALPIQUE, por Rui Abrunhosa

Ou foi em 1945 ou 1946.

Meu pai era Médico do Quadro de Saúde de Angola e, nessa qualidade, desenvolvia, entre mais, o combate à doença do sono, ao paludismo e a outras doenças tropicais na região dos Dembos, situada a cerca de 300 km para Norte-Leste de Luanda. Vivíamos, por isso, em Quibaxe.

Em casa gémea da nossa vivia o Aspirante (do Quadro Administrativo de Angola) Campos Costa. Tinha o 5º Ano dos Liceus, sonhava fazer o 7º e, candidatando-se a bolsa do Governo Geral de Angola, vir a fazer o Curso de Engenharia da Universidade do Porto. Tinha por companheiros de casa dois jovens aguarelistas. Pintavam, como bolseiros do Governo de Angola, as gentes e as atmosferas humanas da região. Estes dois jovens viram suas bolsas prologadas para a Escola de Belas Artes do Porto e vieram depois a ser os notáveis Pintor Neves e Sousa e Arquitecto Campino. Deram-me ladrilhos de aguarela, um pincel e dois godets de porcelana - um redondo e outro quadrado. Ainda conservo o quadrado… e a memória da frustração de não conseguir arrancar nada do papel, como eles, enquanto os observava horas a fio...

Antes do lusco-fusco que não durava mais do que cinco a dez minutos, os vizinhos tinham por hábito passear na “estrada”.Coisa de meia hora, enquanto não aparecia o miruí ( o infernal mosquito, quase microscópico, com despertador no momento do curto intervalo dia-noite, que deixava a pele, quando não coberta de roupa, esbraseada de queimor pruriginoso). Nessa meia hora, anterior à do miruí, de higiénico passeio, conversava-se, cá fora, o quotidiano, ultimava-se, lá dentro, o jantar e aguardavam-se notícias da BBC, às 7 da noite. Decorria a II Guerra Mundial. A zona de Quibaxe estava infestada de funcionários do estado alemão, transvestidos de agricultores de café , preparando a ocupação económica de Angola, exdruxulamente grávidos de incomodativa arrogância, notada até por uma criança, como eu, o que agigantava ainda mais ansiedades por uma vitória dos Aliados… e pelas notícias lidas e comentadas, na onda curta da BBC, pelo Fernando Peça.

Lembro, como se fosse há dias, que o Aspirante Campos Costa, quase todos os dias, falava com entusiasmo, a meu Pai, sobre os progressos do seu empreendimento escolar, que decorria no mais completo autodidatismo e no mais profundo silêncio da sua solidão nocturna, estudando até à meia noite ou à 1 da manhã. E veio a época de exames por princípios de Janeiro, como então ainda era vigente e, por isso, diferido do calendário metropolitano. O Aspirante Campos Costa foi a Luanda prestar provas. Em Quibaxe ficaram as ansiedades de toda a gente que muito o estimava. Regressou cerca de quinze dias depois, muito triste porque não tinha conseguido classificação em Matemática que o autorizasse a candidatar-se à bolsa de estudo no Porto. Recordo – estou a vê-lo – o seu semblante, triste e a sua linguagem corporal de derrotado e desejoso de desistência. De hora vespertina em hora vespertina, Com a minha mão na mão de meu Pai fui ouvindo os diálogos entre quem tinha dúvidas sobre as suas próprias capacidades e de quem tinha certezas (meu Pai) para entusiasticamente estimular, fortalecer, entusiasmar, fazer acreditar, demonstrar a qualidade do diamante a lapidar. Decorreram meses e regressa a época dos exames. Por coincidência e razões profissionais meu Pai estava então em Luanda. À hora do almoço pergunta-me, no Hotel Atlantique, se quero ir com ele ao Liceu Nacional Salvador Correia, na Rua de Brito Godins (em Luanda, claro! …) assistir à prova oral do Aspirante Campos Costa. Arrebitei-me logo, incendiado de curiosidade. Surpreendeu-me o que na época dos meus oito-nove anos me parecia a sumptuosidade do edifício do “Salvador Correia”, novo em folha, e o deslumbramento dos jardins e dos campos de jogos. A sala onde iam ocorrer as provas orais era ampla, muito bem iluminada, por vastas janelas, com algumas pessoas na assistência. No topo, sobre um estrado, por trás de uma secretária. sentavam-se três Senhores. O do meio, disse-me meu Pai em surdina, era o Senhor Reitor e, explicou-me, era o responsável máximo por tudo que representava a vida daquele Liceu. Eu não conhecia aquela palavra: Reitor !. Chamaram o aluno Campos Costa que entrou e permaneceu de pé. Enquanto isso o Senhor do meio levantou-se, tranquilo, bordejou a secretária encostou a anca ao bico deste móvel, sorriu para o examinando, levantou as sobrancelhas e falou – não recordo os termos mas lembro a ideia – elogiando a pertinácia do aluno, salientando a invulgaridade de ali se apresentar como estudante voluntário, mostrando-lhe conhecer a sua história e pedindo-lhe a maior tranquilidade porque lhe garantia desde logo a certeza de um completo sucesso. Convidou-o a sentar-se, regressou ao seu lugar, pôs o júri a funcionar e rodando-se em direcção à janela assim se quedou, queixo levemente erguido, olhos levantados, através da janela, para o horizonte, pestanejando, agora e logo, parecendo ausente mas de rosto muito vagamente sorridente, de quem por dentro ia aplaudindo e gritando: «marca lá mais dois pontos para o Moscavide! …»…… Manuel da Cruz Malpique – lui-même. Com todo, e no melhor, do seu “molho” ! Presidindo àquele Júri, Reitor daquele Liceu . Observado por aquele menino , em quem logo deixou dedada, na argila, que ele, menino, era (!) deixando-lhe, logo ali, o gosto de O observar, admirar e tentar compreender para o resto da vida.:. O Aspirante Campos Costa foi aprovado com a classificação final de 20 valores e, em Outubro seguinte, iniciou o seu curso de Engenharia na Universidade do Porto. (Ajudou depois dois irmãos a obterem a licenciatura em medicina naquela mesma U.P. e a fazerem-se radiologistas. Vieram a ser dois dos melhores imagiologistas portugueses, perpetuados no Instituto Campos Costa).

Cá fora, terminados abraços e risos, de felicidade e alegria, meu Pai, à saída do júri, sòzinho – observei de longe – dirigiu-se ao Dr. Cruz Malpique perguntou-lhe algo em frase breve, recebeu uma indicação em tom amável, despediu-se, fez me sinal para esperar mais um pouco, dirigiu-se às instalações da “Caixa Escolar” e trouxe na mão um livro que conservo comigo e de que ao lado podeis observar a respectiva capa. – Higiene Intelectual e Moral do Estudante, por Cruz Malpique, Professor do Liceu Salvador Correia, Edição da “Caixa Escolar” do Liceu Nacional Salvador Correia - Luanda - Angola - 1938. A titulo de preventiva explicação e justificação meu Pai comentou-me que, um dia, eu haveria de apreciar aquele livro !.... .

No Prólogo desse livro o Dr. Malpique escreve: «A Educação da Escola há de ser tal que o Estudante, ao deixar esta, saia com espinha direita, inteligência clara, coração puro.» Ao acabar tal Prólogo, como que repete, «Malpiquizadamente», a teimosia do Galileu: «Não quero pedir perdão de nada.» (sic)

Nunca precisou de pedir perdão de nada ! Foi por isso um dos maiores vultos da Educação em Portugal !...

O Dr Cruz Malpique teria feito este ano 105 anos de idade. Continua e continuará “ad eternum” a não precisar, nunca, de pedir perdão de nada!

M. Mendes, em postagem de 28 de Agosto último no Blogue

http://conselhodenisa.blogspot.com/2007/08/105-anos-do.nascimento-de-cruz-malpique

assinala este aniversário publicando uma FABULOSA FOTOGRAFIA DO DR. CRUZ MALPIQUE. . Não encontrei explicitação do Autor de tão extraordinário trabalho de arte fotográfica .Quanto gostava de lhes patentear a M. Mendes e ao Autor da fotografia – serão uma só e a mesma pessoa?!...) o meu apreço pela profunda emoção que me proporcionaram . Aceitem que me curve para vos agradecer. E perdoem-me desde já e por antecipação… não resisto:

Claro que o Dr Malpique é de Niza, é dos Nizences…A Fotografia “é” do seu Autor… Mas o Dr. Malpique também é de todos os que tiveram o previlegio de terem sido seus educandos.

O Dr. Cruz Malpique é, em três palavras , Património de Portugal. Não resisto, por isso : aqui fica para admiração por seus antigos alunos no LICEV a fotografia, em Niza, do Dr Cruz Malpique !! Haverei de procurar o seu autor para o felicitar.

Anexo também digitalização da capa da obra «Higiene Intelectual e Moral do Estudante» doada à Caixa Escolar do Liceu Salvador Correia em 1938, como fica mostrada acima, e do curioso e inquietante “Ex-Libris” que nela se imprime e com que fecha esta postagem.


Rui Abrunhosa


- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

NOTA (ZM): A publicação desta postagem com a data que lhe corresponde exige uma explicação: quando o Rui Abrunhosa m'a mandou, a 10 de Dezembro, tinha eu chegado de visitar uma mina na terra do Feiticeiro de Oz (era a Dorothy por cima e eu por baixo) e encontrado a minha caixa de correio atafulhada por impertinentes "spammers" que a saturam e por alguns amigos caridosos que acham de bem mandar-me algumas vitaminas pró-reguilanço sob a forma de fruta adequadamente descascada. O caso é que a postagem ficou perdida e que, após uma justa reclamação do seu Autor, tive eu agora que a descascar numa espécie de trabalho paciente e arqueológico, até vir a lume e ser editada com a data que rigorosamente deveria ter sido. Sorry for that, Ruy, como nos ensinaria o Teacher nestas circunstâncias. Desapareceu também um cartão de BF's que eu tinha preparado, mas desse então nem "signaes" (esta grafia é uma proposta contra a anunciada reforma que permite dizer que " fato é que preciso de um fato"! Com votos de Bom Ano para todos, do ZM (a 080107)